José Arroyo

Vice-presidente Regional da CEPA para América Central e Caribe

A Palavra da CEPA

Para muitos de nós haverá de soar familiar a frase “arruma teu quarto”. Seja porque a recordamos de nossa infância ou porque a tenhamos utilizado nos anos de infância e adolescência de outros. Parte da premissa de que há desordem no aposento, cria-se a expectativa de que haja ordem, sugerindo-se à pessoa encarregada daquele espaço que compreenda o que se espera. Possivelmente tenha sido voltar a ver o fruto de se ter “arrumado o quarto” e encontrar coisas amontoadas em outro lugar, empilhadas em uma esquina ou simplesmente empilhadas com igual desarrumação de um ponto do quarto para outro.

Essa cena quotidiana para muitos pode-nos servir de grande ensinamento sobre a vida própria e a vida em sociedade, assim como de porquê, às vezes, repetir “amar o próximo como a si mesmo” não é suficiente para alguns.

A pessoa que gerou a desordem sente-se dona desse espaço. Arruma-o e o desarruma a seu gosto. Possivelmente o que outros veem como desordem seja uma maneira distinta de deixar acessíveis suas coisas. O que é ordem para uns é visto como desordem por outros. A expectativa do outro com relação ao que implica em ordem esperada é fonte de frustração e exasperação para alguns adultos. O que eu esperava não coincidiu com o resultado obtido. Entretanto, a partir da outra perspectiva, daquela de quem recebeu a ordem de arrumar, o que parecia prático e factível, foi efetivamente relocalizado para não mais estorvar. Cumpriu-se da melhor forma compreendida. Se analisarmos essa cena à distância e objetivamente, buscando explorar ambas as perspectivas, os dois estariam corretos, sem intenção danosa, malevolências ou desejos de incomodar em qualquer das ações, a de exigir ordem e a de ordenar de alguma maneira.

Se a comunicação fosse efetiva e assertiva, tudo ficaria claro e se evitariam os mal-entendidos, as interpretações parciais.

Muitos indivíduos passam a vida pensando que dizer e repetir palavras ou frases nobres são traduzidos de igual maneira para todos e são interpretadas de maneira universal.

Não é assim.

O contexto, a intenção e a clara indicação do que se espera e significa podem ajudar a comunicar mensagens que efetivamente sejam claramente compreendidas. Pensar que toda a pessoa que abraça uma crença, uma fé ou uma espiritualidade de forma particular entende tudo de maneira clara, cria uma falsa expectativa. Vemos isso diariamente.

Todos os indivíduos que se movem num contexto cultural de influência judaico-cristã estão familiarizados com a frase “amar o próximo como a si mesmo”. Contudo, ela se presta a múltiplas interpretações.

Um grupo de indivíduos pensa que a mulher não deve ocupar o mesmo espaço que o homem em sua congregação. Esta não pode pregar no interior do salão de culto, mas somente fora dele. Aceitam que o homem é a cabeça da família e a mulher lhe deve obediência. Não apenas assim veem os homens dessa fé, mas também as mulheres do mesmo culto o admitem. Enfim, eles estão “amando o próximo como a si mesmo”, porque não estão agredindo amedrontando ou menosprezando a mulher, segundo sua perspectiva, mas lhe oferecendo uma perspectiva distinta e protegendo-a para que se dedique a outras tarefas. Essas pessoas estão cumprindo com o amar ao próximo como si mesmos, de maneira literal a partir de sua visão, não, contudo, de forma equitativa e ampla.

Um outro exemplo: os seguidores de certa seita entendem que o mundo inteiro devia ser convertido a suas ideias. Criaram missões mundiais e saíram a convencer a todos. Enviam seus jovens a países distantes de seus lares para que ajudem as pessoas que possam, acompanhe os anciões solitários em seus lares e estudem junto a eles seus livros sagrados, com o fim posterior de lhes convencer de que seu caminho é correto.

Por outro lado, os indivíduos que tivessem uma cor de pele que não fosse clara, branquela, pura, seriam os herdeiros de uma maldição divina e não poderiam aspirar posições, lugares ou voz e voto na administração de determinada igreja. Claramente, tudo isso mudou quando, subitamente, suas correntes de seguidores passaram a ser majoritariamente de tez escura, e uma “revelação divina” lhes indicou que era preciso reinterpretar o texto sagrado e sua doutrina. Todas essas pessoas estavam amando o próximo, mas agiam com preconceito, segregação e discriminação.

Assim como esses dois exemplos da vida real, poderíamos citar muitos outros que conhecemos nesse amplo e escabroso campo da fé e da crença. Amar o próximo como a si mesmo não é um comando acompanhado de claras instruções, porque está sujeito à interpretação, à justificação e à conveniência de quem lidera e daqueles que cegamente seguem. Se ao falarmos em amar o próximo não incluímos conceitos como equidade, igualdade, inclusão, respeito, desinteresse, justiça, educação, liberdade, pluralismo, alteridade, oportunidade, homo afetividade, desenvolvimento e responsabilidade, não estamos falando o mesmo idioma.

Em uma realidade na qual as palavras predominam sobre o pensamento que as gera; em uma encarnação na qual as palavras podem ser habilmente manejadas para levar a um significado diferente; em uma etapa transitória em que as palavras possam ser acomodadas às nossas conveniências, é inegável a necessidade de explicar, ampliar, abundar e ser concisos naquilo que se pretende comunicar. “...As crenças reprováveis são aquelas que arrastam ao mal”, indica-nos a questão 838 de O Livro dos Espíritos. Se levar as pessoas a incorporar atitudes machistas, excludentes, racistas, classistas, xenofóbicas, homo fóbicas e discriminatórias, não é arrastar ao mal, então não teremos compreendido nada do que seja a mensagem espírita.

Por isso, amar o próximo como a si mesmo será suficiente apenas quando tenhamos como perspectiva tudo o que isso implica para o bem absoluto de outros, assim como para si próprio.

JON AIZPÚRUA

Ex-presidente da CEPA (1993/2000) e atual Assessor de Relações Internacionais

Trinta e três perguntas dirigidas à consciência dos espíritas:

Quantos espíritas são fiéis a umas ideias em vez de ser docilmente leais a umas siglas?

Quantos espíritas admiram alguém que não pense como eles?

Quantos espíritas se permitem ter dúvidas sobre algumas de suas crenças, sustentadas nos ensinamentos de autores encarnados ou desencarnados?

Quantos espíritas se atrevem a questionar ideias expostas por seus autores fundamentais?

Quantos espíritas assumem que no Espiritismo não se trata de crer mas de saber?

Quantos espíritas sucumbem à adoração reverente dos médiuns e dos espíritos?

Quantos espíritas examinam com senso crítico as comunicações mediúnicas?

Quantos espíritas adotam em sua vida a prática quotidiana da leitura e do estudo de textos espíritas e de outras orientações filosóficas?

Quantos espíritas são capazes de superar as interpretações literais?

Quantos espíritas estão dispostos a mudar algumas de suas opiniões?

Quantos espíritas leem ou escutam outros espíritas que pensam diferente?

Quantos espíritas antepõem os ideais e a ambição pelos cargos nas instituições espíritas?

Quantos espíritas exigem mais de si mesmos do que dos demais?

Quantos espíritas acorrem a um debate sem haver decidido previamente quem é seu favorito?

Quantos espíritas estão dispostos a aprender com aqueles que expressam ideias divergentes das suas?

Quantos espíritas compreendem que o amor, entendido e praticado, é o fundamento da vida e da evolução?

Quantos espíritas permitiram-se amar alguém com uma ideologia diferente?

Quantos espíritas consideram que não são necessariamente melhores que seu vizinho?

Quantos espíritas sabem perdoar?

Quantos espíritas preocupam-se com as questões sociais e entendem a necessidade de analisá-las e de se pronunciar sobre elas?

Quantos espíritas tomam consciência das injustiças sociais, a fome e a miséria que maltrata milhões de seres humanos e não buscam justificá-las como “dívidas” e “expiações” de vidas anteriores?

Quantos espíritas oferecem o concurso de sua participação ativa para corrigir os males que afetam a humanidade e atrasam seu processo evolutivo?

Quantos espíritas estão completamente à margem de teorias ou práticas discriminatórias, homofóbicas, racistas e xenofóbicas?

Quantos espíritas denunciam o horror e o sofrimento provocado por regimes teocráticos, fundamentalistas e fanáticos?

Quantos espíritas creem realmente na igualdade entre todos os seres humanos?

Quantos espíritas assumem a vigência da liberdade individual, social e política, como requisito indispensável para o progresso material e espiritual?

Quantos espíritas respaldam a liberdade e a democracia para todas as nações, sustentadas no pluralismo político, separação de poderes, liberdade de expressão e de reunião, e eleições limpas para a escolha dos governantes?

Quantos espíritas denunciam os regimes tirânicos ou autoritários, com independência do viés ideolótico ou político que os identifica?

Quantos espíritas estão dispostos a censurar a corrupção, no âmbito público ou privado, sem matizes, atenuantes nem exceção?

Quantos espíritas estão dispostos a defender o império das leis no quadro do estado de direito, ainda quando podem se ver afetados seus interesses particulares?

Quantos espíritas promovem a paz no mundo sobre a base da coexistência respeitosa entre as nações e rechaçam as guerras e o uso da força das armas para conquistar territórios?

Quantos espíritas compreendem que não há um “além” feliz para os desencarnados se não se constrói um “aqui” justo, equilibrado, harmônico e fraterno?

A quantos espíritas, finalmente, importa o espiritismo?

A CEPA, como entidade kardecista, laica, livre-pensadora, humanista, pluralista, progressiva e progressista, constitui um espaço aberto no qual se sintam cômodos todos os espíritas que se impressionem e reflitam diante de perguntas como estas e decidam, como sugeria Kardec, atrever-se a pensar, a privilegiar a razão e antepor os valores éticos como guias de suas convicções. Isso é indispensável para a consolidação de um movimento espírita que possa contemplar sem complexos o século XXI e enfrentar com êxito seus enormes desafios.

Dante López

Ex-presidente da CEPA (2008/2016)

Semelhanças e Diferenças

Há algum tempo, Yolanda Clavijo, Presidente de CIMA Venezuela, sugeriu-me um tema específico para o ciclo que organizam com muita dedicação há vários anos via Zoom: “Constelações Familiares”;

Como conheço o tema, sem ser especialista, convoquei uma amiga, a Licenciada em Psicologia Alejandrina Cianflone, para nos apresentarmos nesse espaço com uma espécie de conversação informal contrastando: “Semelhanças e diferenças entre a Sessão Mediúnica e as Constelações Familiares”.

Alejandrina, que já tem muitos anos como Terapeuta Gestáltica e como Consteladora ajudou-nos a entender quais são os fundamentos dessa Ferramenta Terapêutica que teve sua origem em um Psicoterapeuta alemão, Bert Hellinger.

Em seu livro “As Ordens do Amor”, Hellinger explica sua teoria, baseada na existência de uma memória familiar coletiva, na qual postula que as relações familiares interpessoais se fundam no amor como base e aspiração do ser humano, mas também diz que “Sem Ordem não há amor”.

Como todas as teorias, esta tem seus seguidores e seus detratores, de formas que nos pusemos a desvendar o fio que tece a meada das relações familiares à luz dessa Teoria Filosófica, como gosta de chama-la seu fundador.

A comparação com a Sessão Mediúnica faz-se necessária porque, em primeira medida, somos espíritas laicos, progressistas e livres-pensadores e, portanto, estamos em uma busca constante de atualização de métodos e contribuições que possam ajudar a entender o sentido da vida e as infinitas variáveis que conduzem à espiritualidade.

As “Constelações” são espiritualistas em essência, já que, como dissemos, parte da existência de uma “alma” ou “consciência familiar” que incide na existência de um ou vários membros de cada grupo familiar, geração a geração.

A Doutrina Espírita propõe, por sua vez, que os espíritos encarnam em grupos e que, existência a existência, vão criando laços de amor e também conflitos, sem resolvê-los, que vão criando uma urdidura de relações espirituais intergeracionais, podendo alcançar várias gerações.

Assim, a raiz é similar, ou seja, estamos falando em ambos os casos que há uma inteligência espiritual que antecede e sobrevive ao corpo físico e se manifesta de diferentes maneiras e por métodos diversos.

Em uma sessão mediúnica, um espírito familiar pode nos fazer saber de suas angústias não resolvidas, assim como um espírito encarnado pode manifestar a necessidade de cumprir algum mandato que não compreende.

Em ambos casos supostos, tanto uma sessão mediúnica, como uma Constelação, realizada por pessoas idôneas em um ambiente saudável, podem vir informações pertinentes que colaborem com a resolução de conflitos intergeracionais.

Não é minha intenção desenvolver aqui toda a teoria, mas apenas gerar inquietação ao leitor que investigue o tema e o veja como outro caminho alternativo na busca da espiritualidade.

Para quem se interesse em conhecer mais, acessar https://youtu.be/7SutjHkOMus

Nesta primeira parte do Século XXI, os espíritas nos sentimos de parabéns. Já não se referem a nós como uns lunáticos em busca de utopias transcendentes. Qualquer pessoa que se tenha por bem informada e com algum nível de cultura trabalha hoje conceitos como Reencarnação e Vidas Sucessivas com total naturalidade. A Biologia, a Física, a Psicologia Transpessoal e muitas outras disciplinas vêm corroborando os postulados espíritas em uma velocidade incrível.

Falta a nós, espíritas, uma forma consistente de trabalhar a consecução de métodos seguros e confiáveis para que a Sessão Mediúnica Kardeciana, um verdadeiro achado de Kardec, que conseguiu dar à Mediunidade controle e contenção, siga sendo a Ferramenta Espírita por excelência.

Ademar Arthur Chioro dos Reis

Assessor Especial da Presidência da CEPA

A Palavra da CEPA

Decorridos mais de dois anos da eclosão da pandemia de Covid-19, que já causou 509 milhões de casos e 6,2 milhões de mortes em todo o mundo, aos poucos a vida começa finalmente a ganhar ares de normalidade.

O quadro sanitário internacional, todavia, é marcado ainda por muitas incertezas. Em meados de abril foram registrados óbitos por Covid em 66 países, com números expressivos na Rússia, Coreia do Sul e Tailândia. A Organização Mundial de Saúde considera que a pandemia ainda não acabou e alerta para a necessidade de enfrentar a iniquidade e ampliar a cobertura vacinal para que pelo menos 85% da população de cada país receba as doses necessárias da vacina. Entretanto, até a última semana de abril, apenas 15,4% das pessoas que vivem em países de baixa renda tomaram pelo menos uma dose da vacina, gerando uma situação de insegurança sanitária, já que há possibilidade de desenvolvimento de novas variantes.

Assim que surgiu a pandemia, a CEPA rapidamente procurou se adaptar aos novos desafios. Utilizando de forma precoce e intensiva aplicativos de comunicação social, promoveu inúmeros eventos, culminando com a realização, de forma virtual, em 2021, do seu Congresso Internacional, brilhantemente presidido por David Santamaria, do Centro Barcelonês de Cultura Espírita. Lançou, também, seis livros da primeira série da “Coleção Livre-Pensar: espiritismo para o Século XXI”, disponibilizados gratuitamente no site da CEPA em quatro línguas (português, espanhol, inglês e francês).

Após a avassaladora onda causada pela variante Ômicron, que causou uma nova explosão de casos, ainda que menos mortes tenham sido mais registradas em função da vacina, observa-se, enfim, em muitos países, uma regressão da doença e o relaxamento de medidas de distanciamento físico. Com isso, a maioria das organizações espíritas vinculadas à CEPA, observando normas sanitárias, retomou progressivamente suas atividades presenciais.

Sem prejuízo de atividades virtuais, que permitem conectar, de forma rápida e baixo custo, espíritas em todos os cantos do planeta, a retomada das atividades presenciais possibilita que nossas instituições possam cumprir um papel essencial neste momento tão delicado.

O futuro é para muitos angustiante e incerto, já que projetos de vida foram interrompidos pela pandemia e as perdas pessoais foram imensas. A crise econômica atingiu fortemente a população na maioria dos países. Muitos abandonaram os estudos, perderam empregos, empobreceram. Outros que sobreviveram à doença ainda lidam com suas complicações e tiveram suas forças físicas comprometidas, exigindo cuidados permanentes.

É preciso considerar, sobretudo, o impacto sobre a saúde mental, em particular daqueles que viveram o isolamento, o medo da morte e que perderam parentes e amigos. Muitos buscaram lenitivo no álcool e nas drogas. O aumento de transtornos mentais é uma realidade. Para além da perda econômica, lidar com a morte de entes queridos tem sido angustiante para muitos. Dúvidas sobre o que acontece após o desencarne, o destino dos entes queridos que partiram, sobre a vida no mundo espiritual, e outros temas sobre os quais a filosofia espírita tem enorme contribuição para a sociedade, fazem com que as instituições espíritas sejam chamadas a cumprir um papel essencial nesse momento de crise existencial que sucede ao da crise sanitária.

Preceitos filosóficos espíritas, como a imortalidade da alma, a evolução infinita e a reencarnação, podem contribuir para uma consoladora e produtiva educação “para” e “sobre” a morte. O exercício criterioso da mediunidade também é fonte de conhecimentos e de apoio espiritual aos entes encarnados e desencarnados que tanto sofrem nesse momento.

A hora exige solidariedade e disposição para acolher todos aqueles que se interessem em compreender o destino do ser, de compartilhar a visão espírita sobre o homem e o mundo. O espiritismo, para além de uma mensagem consoladora ou da pretensão de dar explicações sobre todas as coisas, se compreendido a partir de uma concepção laica, livre-pensadora, progressista e kardecista, produz uma perspectiva generosa, abrangente e profundamente esperançosa do porvir.

Não poderíamos deixar, por fim, de manifestar o posicionamento da CEPA sobre a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que evolui sem perspectivas de uma solução pacífica, somando cenas de horror, estupidez e barbárie.

Repudiamos a violência. Qualquer solução para conflitos entre nações deve ser buscada a partir do diálogo. Somos a favor da paz e do entendimento entre os povos, que devem ser obtidas por vias diplomáticas. É preciso dar uma basta a tanto sofrimento, dor e destruição. Interesses econômicos ou políticos, explícitos ou subjacentes, assim como nenhuma razão de Estado ou de segurança nacional são capazes de justificar esse ou qualquer outro conflito armado.

Queremos um planeta que viva em paz, onde reine o respeito e a solidariedade. Isso só será possível quando vivermos como irmãos, compreendendo e praticando a Lei de Justiça, de Amor e de Caridade, como nos ensina Allan Kardec em O Livro dos Espíritos.

Jon Aizpúrua

Ex-presidente da CEPA (1993/2000) e atual Assessor de Relações Internacionais

Nós, espíritas, costumamos falar de "espiritismo" no singular, quando nos referimos à doutrina fundada, sistematizada ou codificada por Allan Kardec no século XIX. Diz-se, reiteradamente, que o "espiritismo é um só" e que a causa das divergências que costumam aparecer e reaparecer em momentos diferentes deve ser debitada às condições espirituais, intelectuais ou morais, particulares de cada um de seus seguidores, sejam eles encarnados ou desencarnados, médiuns ou não, atribuido-se também um peso significativo à influência de tendências negativas derivadas do orgulho, dos preconceito ou das crenças provindas do dogmatismo ou do fanatismo.

No entanto, estamos convencidos de que seria muito mais adequado usar essa palavra no plural, "espiritismos", se quisermos abrir os olhos para o que já é uma realidade do que aconteceu e está acontecendo com a proposta kardecista, e não apenas sucumbir aos nossos desejos. Deixaremos agora de lado, para efeito de nossa exposição, os sincretismos, nos quais as crenças católicas e as tradições africanas e indo-americanas se amalgamam com práticas mediúnicas exuberantes e heterogêneas cujos participantes não hesitam em se apresentar como espíritas, como fazem os membros de grupos que se constituíram em torno das opiniões ou ensinamentos dos ditos Mestres ou entidades espirituais superiores e que rejeitam ou subestimam explicitamente a orientação kardecista. E tampouco trataremos do chamado “espiritualismo moderno”, muitas vezes indevidamente denominado “espiritismo anglo-saxão”, um de cujos traços distintivos é a rejeição da tese reencarnacionista.

Por si sós, as menções anteriores confirmam essa pluralidade de espiritismos a respeito da qual comentamos, mas a nossa reflexão não vai exatamente nessa linha, e sim quer chamar a atenção para as numerosas e variadas modalidades apreciadas no movimento espírita mundial, seja em grupos, sociedades, fraternidades, federações de âmbito nacional e internacional; também em congressos ou em publicações ou nas declarações e exposições de dirigentes, escritores, oradores ou médiuns, sem falar nas práticas mediúnicas em que florescem diferentes critérios ou ocorrências, tornando as diferenças abismais. A realidade objetiva é que instituições e pessoas que, nuances à parte, reconhecem a obra de Kardec como sua referência essencial, fazem leituras bastante díspares e às vezes antagônicas do mesmo espiritismo e do pensamento de seu fundador.

Em nossa opinião, reconhecer e assumir essa pluralidade já é questão de senso comum, porque os fatos claramente o indicam. E parece-nos do maior interesse refletir sobre as causas e as chaves das divergências que separam os espíritas. É evidente que não há diferenças substanciais quanto ao reconhecimento e proclamação dos postulados básicos que definem o espiritismo: Deus, espírito, sobrevivência, evolução, reencarnação, causalidade espiritual, mediunidade, vida universal. No entanto, existem, e muito profundas, no que se refere às concepções, explicações ou interpretações desses princípios e suas derivações ou aplicações.

A primeira coisa que se deve fazer é analisar se os ensinamentos de Kardec, fruto de suas pesquisas e as orientações ditadas pelos Espíritos que o assessoraram, foram claros e explícitos o suficiente para a resolucão de todas as questões filosóficas, científicas, éticas e materiais ou espirituais, que se propuseram a examinar seguindo um esboço metodológico admirável. Neste ponto crucial, podemos encontrar a raiz das divergências que deram origem aos vários espiritismos.

Convém lembrar que Kardec advertia com insistência que o espiritismo deveria avançar com o progresso e retificar-se no que estivesse errado, e é como se procede quando se trata de uma doutrina filosófica e científica de consequências morais, sobre a qual sentenciou que “seu verdadeiro caráter é o de ciência e não religião ”. Sobre assuntos muito diversos, ele esclareceu que havia formulado algumas teorias hipotéticas sujeitas a aguardar sua confirmação no futuro, sob pena de serem descartadas. Infelizmente, essas definições, que nos parecem claras e precisas, são, no entanto, ignoradas, ou mal interpretadas, submetidas a um processo de ressemantização para que não digam o que dizem e não signifiquem o que realmente significam.

Mesmo assim, deve-se admitir que, em certos pontos, o ilustre pensador francês não foi suficientemente explícito, incorreu em ambiguidades e contradições, e não conseguiu ir além dos moldes da teologia cristã ou das noções científicas vigentes em seu tempo. Assim, alguns espíritas usam suas opiniões para sustentar as suas próprias, enquanto outros, com as mesmas citações, sustentam conceitos muito diferentes.

Muitos espíritos, a maioria aliás, em contradição com o projeto kardecista, assumem o espiritismo como religião, ou mesmo como “A” religião. Eles assumem que nas obras básicas de codificação tudo é dito e que tudo o que é dito é absolutamente verdadeiro, indiscutível e intocável. Eles consideram que a missão do espiritismo é o restabelecimento do "cristianismo primitivo ou original" e, por conseguinte, a evangelização representa a síntese da tarefa a ser realizada no mundo. E se formos para a linguagem que eles usam, é tão mística, adocicada, piegas e conservadora, que supera a de qualquer uma das muitas congregações evangélicas que competem para ganhar seguidores em todos os lugares. Quantas vezes lemos ou ouvimos, para nosso espanto, que os representantes do espiritismo cristão se apresentam como "os trabalhadores de Jesus" e que o seu trabalho consiste em "conduzir mais ovelhas ao rebanho do Senhor"! Aliás, a cada dia uma concepção desnaturada de Jesus, que eles dizem "nem homem nem Deus", ganha mais força nesse movimento, confirmando que adotaram a tese roustainguista do Jesus fluídico e se afastaram do ensino kardecista, no que diz com a condição humana, inteiramente natural a Jesus.

Aqueles de nós que se definem como espíritas laicos, livres-pensadores, não religiosos, humanistas, universalistas, racionalistas, pluralistas, progressivos e progressistas, pensam de forma diferente. Expressamo-nos com uma linguagem bem distina, concebendo diferentes caminhos e objetivos para o projeto kardecista, e portanto, estamos situados em outro espiritismo. Não pretendemos ter a verdade, que por definição é impossível de ser detida ou apreendida em termos definitivos ou absolutos. Na melhor das hipóteses, seria a nossa verdade. Com humildade reconhecemos as nossas limitações, mal compensadas pela vocação que nos impulsiona ao estudo, o uso da razão, a dúvida e a procura do conhecimento mais do que a crença, e o exercício do direito inalienável à liberdade de pensamento, de consciência e de expressão, livre de idéias supersticiosas provenientes da cultura do pecado ou da culpa. Não temos vocação de ovelha, preferimos sentir-nos como águias que estendem as suas majestosas asas para voar livremente às alturas e ver novos e mais amplos horizontes.

Estabelecer essas precisões relativamente aos limites que nos separam dentro do movimento espírita não apenas implica em reconhecer uma realidade por todos conhecida, como também de que isso pode ser assumido com espírito sereno, com disposição para o diálogo e para o estabelecimento e consolidação de um clima fraterno nas relações que hão de primar entre os espíritas, respeitando o que cada um, conforme seu livre arbítrio, entenda ou aceite.

Com frequência, costuma-se apontar que “entre os espíritas há mais o que nos una do que nos separe”, e isso é correto se estamos nos referindo aos postulados centrais da doutrina espírita, os que constituem seu núcleo duro, mas, como temos dito, assim não é quando se trata de definir o espiritismo e abordá-lo em todas as suas implicações e análises de cada um desses princípios e a complexidade de suas consequências.

Há espaços e momentos adequados para os vários espiritismos comunicarem, dialogarem e partilharem conhecimentos e experiências. Um diálogo sem desqualificações e independentemente da pretensão de querer converter alguém. Quem sabe se um diálogo assim praticado poderia resultar em um benefício significativo para a compreensão e difusão do Espiritismo, este, no singular e com maiúscula.

Dante López

Ex-presidente da CEPA (2008/2016)

Prestes a iniciar uma viagem doutrinária por diversos países da América Central e do Caribe e entusiasmado com a tarefa de levar o pensamento do CEPA, não podemos deixar de analisar a realidade do Espiritismo hoje.

Ele é pouco conhecido. O que se conhece é a fenomenologia mediúnica, utilizada de várias formas, nem sempre com métodos confiáveis, ​​e muitas vezes o Espiritismo é confundido com a prática da mediunidade. Seu potencial como filosofia capaz de modificar comportamentos pode realmente afastar o ser humano da visão imediatista que impera na sociedade atual.

A Filosofia Espírita não é excludente, qualquer pessoa pode compreender seus postulados, e ao mesmo tempo é inclusiva, pela sua visão. Todo ser humano é digno do maior respeito, pois cada experiência é algo que eu próprio já passei ou que irei passar. Desse modo, ser solidário com aquele que precisa é ser solidário consigo mesmo. Ninguém está isento de dificuldades, só por isso vemos os nossos irmãos humanos de forma diferente, independentemente da sua raça ou tendência que tenham.

No entanto, apesar do potencial do Espiritismo, nós espíritas não conseguimos concordar acerca seu caráter, e isso por si só retarda seu progresso. Há uma grande maioria que o coloca na dimensão de uma nova religião, outros que o misturam com práticas rituais e há muitos que o mencionam em suas práticas mediúnicas importadas de outros segmentos, distorcendo sua verdadeira essência.

Apesar de tudo, a potencialidade do Espiritismo permanece intacta, guardando a expectativa de que saibamos utilizá-la corretamente como ferramenta do conhecimento universal, aliada à ciência humana e às necessidades atuais da humanidade.

Tenho visto jovens espíritas transformarem suas angústias existenciais em esperança e sua tristeza em otimismo ao compreender o funcionamento das leis de Deus, e gostaria que todos tivessem essa possibilidade. É um instrumento para a vida e daria às novas gerações elementos para apaziguar o consumismo e hedonismo, valorização de sentimentos e troca solidária.

Em outra ordem de coisas, não seria conveniente um Espiritismo institucionalizado, mas sim com organizações que sirvam para aproximar as pessoas, estudando e transmitindo experiências e métodos de trabalho capazes de produzir o enriquecimento mútuo. Um Espiritismo institucionalizado corre o risco de seguir o caminho das religiões: transformar-se em fim em si mesmo e deixar de ser meio para ajudar a construir um mundo melhor.

[Publicado em AMÉRICA ESPÍRITA - ANO XIV - N ° 153 - OUTUBRO 2011]

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