Ricardo de Morais Nunes

Presidente da CEPABrasil e Membro do Departamento de Pesquisa e Produção de Conteúdo da CEPA (Coleção Livre-Pensar).

O espiritismo, como filosofia integral que busca compreender o ser em sua totalidade, pode ser dividido, pelo menos, em cinco campos temáticos fundamentais.

O CAMPO FENOMÊNICO

O espiritismo realça uma variedade de fenômenos da natureza que sempre foram relegados ao domínio do sobrenatural, do mistério ou da imaginação. Allan Kardec, na França, e também os estudiosos do moderno espiritualismo anglo-saxão do século XIX e início do século XX, cumpriram um papel importante em dar a esses fenômenos o caráter de objeto de estudo.

Esta contribuição ao estudo dos fenômenos ainda tem sido subestimada na contemporaneidade pela maior parte dos homens e mulheres de ciência, os quais ainda não conseguiram se despir do preconceito materialista em relação a esse tema ou simplesmente ignoram este importante momento histórico de pesquisas sobre a temática do espírito.

A COSMOVISÃO

A partir do diálogo crítico, autônomo, de Kardec com os Espíritos surge uma cosmovisão de mundo, uma filosofia, que busca compreender racionalmente o ser, suas causas primeiras e ultimas, os elementos do universo, suas leis, o significado dos seres vivos em geral e dos seres humanos em particular, sua destinação espiritual, entre uma infinidade de temas. Nasce uma filosofia que pretende dar conta do todo, da totalidade do ser.

Curioso observar que quando o espiritismo nasce, os ventos da filosofia estavam prestes a começar a soprar para a pós modernidade. A pós modernidade irá criticar fortemente as filosofias que buscam compreender a totalidade do ser. Há estudiosos que afirmam, por essa razão, que Kardec seria uma espécie de “iluminista tardio”.

A REFLEXÃO ÉTICA

Sem dúvida alguma o espiritismo possui uma dimensão ética. A perspectiva de mundo oferecida pelo espiritismo motiva o ser humano a transformar seu comportamento em direção aos mais nobres valores comportamentais, quais sejam o amor, a compaixão, a honestidade, o perdão, a sabedoria, enfim estes e outros valores que tornam a vida humana mais digna e feliz.

No campo ético o espiritismo propõe a ideia de leis morais, sendo a moral de Jesus de Nazaré uma espécie de síntese das grandes virtudes éticas.

Nesse sentido, o espiritismo não é uma filosofia meramente especulativa, mas sim voltada para a práxis no mundo. O espiritismo considera que homens e mulheres devem aprender a viver da forma mais harmônica possível e que são os responsáveis por todo o bem e mal que criam nessas relações intersubjetivas.

A REFLEXÃO SOCIAL

O Espírito encarnado, por natureza, vive com outros, vive, portanto, em sociedade. Da mesma forma que a comunicação é da natureza do ser humano é também inerente ao ser humano a sociabilidade. O espiritismo propõe não apenas o desenvolvimento do indivíduo, mas também das sociedades humanas, as quais devem se encaminhar para estágios civilizacionais cada vez mais adiantados de um ponto de vista da dignidade humana e do bem comum.

A ideia da “reforma intima”, tradicional no movimento espírita brasileiro, não expressa de forma precisa a visão espírita sobre o problema. Não cabe, na melhor perspectiva espírita, ao ser humano apenas o aperfeiçoamento pessoal, intimista, alienado, sendo necessário que o Espírito encarnado contribua com o desenvolvimento de seu grupo social, a partir de seus talentos específicos que devem ser exercidos em sociedade.

A METAFÍSICA

O espiritualismo espírita inova a partir da pesquisa empírica sobre o problema do espírito. Na verdade, o espiritismo propõe uma nova abordagem sobre o tema da sobrevivência da alma, a qual não mais se resumiria apenas na fé ou no raciocínio, mas na observação e mesmo experimentação dos fatos empíricos da mediunidade.

No entanto, o espiritismo também postula teses a respeito das causas primeiras e ultimas da realidade, típicas da reflexão metafisica tradicional. Além disso, o espiritismo reflete sobre as informações que os Espíritos trazem do mundo espiritual. Informações que só os Espíritos desencarnados podem fornecer.

CONCLUSÃO

É possível afirmar, por fim, que o espiritismo resgata um pensar sobre a totalidade, aos moldes da filosofia clássica, mas, no que diz respeito a seu principal objeto de estudo, a sobrevivência da alma e sua possibilidade de comunicação com o mundo terreno, utiliza os métodos científicos típicos da modernidade. Sendo assim, o espiritismo nasce como doutrina filosófica e método de pesquisa inaugurando uma nova proposta no campo do espiritualismo.

Milton R. Medran Moreira

Asesor de Relaciones Internacionales de CEPA

O espiritismo não é uma teologia. Diferentemente desta, que é, literalmente, “o estudo de Deus”, o objeto central da filosofia espírita é, justamente, o “espírito”, definido na questão 23 de O Livro dos Espíritos como “o princípio inteligente do Universo”.

Mesmo assim, o “fator Deus” não passou em branco na estruturação doutrinária do espiritismo. E nem poderia passar, tanto assim que é justamente o tema da primeira pergunta de O Livro dos Espíritos, a obra fundamental de Allan Kardec: “O que é Deus?”.

Parece que isso deixa patente não ser possível adentrar ao estudo do espírito, “princípio inteligente do Universo”, sem o pressuposto de uma noção acerca da origem deste, da ligação desse princípio formador do Universo, com uma “Inteligência Suprema”, da qual ele tenha emanado e seja sua própria expressão.

À pergunta vestibular de Kardec, em O Livro dos Espíritos, a resposta dada por seus interlocutores espirituais foi esta: “Deus é inteligência suprema, causa primeira de todas as coisas”.

Tanto na pergunta, quanto na resposta, nota-se uma clara ruptura conceitual com o Deus da Teologia Cristã. Kardec desantropomorfiza Deus a partir da pergunta. Nela não se utiliza do pronominal “quem”, indicativo de pessoalidade. Usa a partícula “que”, não pessoal, sinônimo de “que coisa é”. O conceito de um Deus pessoal, fundamento teológico judaico-cristão, fica afastado, então, a partir da pergunta de Kardec.

Nessa mesma direção está a questão 23, indicando que “o espírito é o princípio inteligente do Universo”. Ela afasta inteiramente a ideia de um Deus, pessoal, criador dos céus e da Terra, enunciada na Bíblia judaico-cristã, dando guarida a uma criação contínua, a um processo permanentemente transformador, inteligente, no qual cabem as modernas teorias evolucionistas.

O espiritismo, dessa forma, não comunga com a teologia bíblica e evangélica, de caráter criacionista, para filiar-se à visão evolucionista da vida, sem, no entanto, afastar Deus do processo criativo, atribuindo-lhe a condição de causa primeira e reconhecendo-o como inteligência suprema. O espírito, como emanação divina, torna-se, então, o princípio do qual tudo deriva.

Esses fundamentos da concepção acerca da divindade, no âmbito da filosofia espírita, levam-nos a buscar, igualmente, distinguir duas correntes de pensamento, bem diferenciadas uma da outra, sobre a própria natureza divina e a ação de Deus no Universo.

A primeira, e mais própria das religiões monoteístas do mundo, é o teísmo . Para os teístas, toda a realidade é fruto da criação divina. Deus criou tudo do nada e governa o mundo, mediante sua vontade soberana. A verdade, para os teístas, provém, fundamentalmente, da revelação divina, e Deus intervém sem cessar na sua criação, assim como em cada ser, desde a mais ínfima partícula, até os seres mais inteligentes da cadeia da vida.

Uma concepção, mais fundamentada na filosofia e muito menos na revelação, é o deísmo. Este se fundamenta na razão, no livre-pensamento e nas experiências pessoais. Para o deísmo mais extremado, Deus, o grande legislador do Universo, sequer interfere no mundo e nos seres, mediante sua vontade pessoal. A sorte de cada um ou de cada sociedade é inteiramente gerida pelas leis universais e pelo livre-arbítrio dos seres inteligentes que povoam o mundo.

Qual a posição do espiritismo e onde poderíamos situá-lo, tendo em vista as duas teorias acima descritas?

As duas questões de O Livro dos Espíritos acima citadas parecem não deixar dúvida da natureza eminentemente deísta da filosofia espírita. Importante publicação francesa do tempo de Allan Kardec, o “Nouveau Dictionnaire Universel”, de Maurice La Châtre, publicado em 1865, ao definir teísmo e deísmo, cita nominalmente, Allan Kardec como um propagador do deísmo.

Vamos reproduzir, abaixo, o verbete “deísmo”, presente naquela importante publicação (original em francês, também publicado junto ao presente artigo), em cujo final Allan Kardec é nominalmente citado:

DEÍSMO, substantivo masculino (do latim Deus, Deus). Doutrina que admite a existência de Deus, mas rejeita a revelação e todas as suas consequências. Os adeptos do deísmo associam essa crença à religião natural. O culto dos teofilatropos, era um deísmo. Distingue-se o deísmo do teísmo, sendo o primeiro oposto à religião revelada e o segundo oposto ao ateísmo. O embrião do deísmo mais puro foi encontrado na França desde o século XVII, especialmente em Bayle, mas é principalmente na Inglaterra, nos escritos de Bolingbroke, Collins, Trindall, Toland, Shaftesbury, Woolston e Priestley, que ele se manifestou abertamente, sendo professado por todos aqueles que se autodenominavam livres-pensadores. Voltaire, J. J. Rousseau e seus numerosos discípulos difundiram o deísmo na França no último século, e nos dias atuais, Allan Kardec, o líder da Doutrina Espírita, continua a obra desses grandes filósofos ”. (grifo nosso).

Como se vê, a filosofia espírita foi recebida na França como uma proposta eminentemente deísta, em oposição ao teísmo robustamente presente na teologia cristã.

Mesmo assim, não se pode negar a existência de conceitos, presentes nas obras de Kardec, que guardam fortes influências teístas, herdadas notadamente do catolicismo. Expressões como “Deus castiga”, “Deus recompensa”, “Deus ajuda”, “Deus intervém” e outras podem ser interpretadas como intervenções, controle e julgamento de um Deus pessoal sobre a vida das pessoas.

Entretanto, na medida em que o espiritismo adota a “lei natural” como “a única verdadeira para a felicidade do homem”, indicando-lhe “o que deve fazer ou não fazer” para a conquista da felicidade (questão 614 de O Livro dos Espíritos), confere ao ser humano aquela autonomia que dispensa intervenções de um Deus pessoal, próprias do teísmo.

A concepção, central na filosofia espírita, de que há essa normatividade natural presente em toda a dimensão universal, como expressão de uma “Inteligência suprema”, que lhe foi “causa primeira”, sem que, para isso, sejam necessários “revelações sobrenaturais”, admoestações, castigos e recompensas, confere ao espiritismo uma natureza predominantemente deísta e não teísta.

De qualquer sorte, e como reflexão final, o “fator Deus”, no âmbito da filosofia espírita, deve ser visto como permanente convite a um melhor entendimento, na mesma medida em que avançamos em mais amplos patamares de conhecimento do Universo, do qual não temos noções definitivas.

Deus é o Absoluto. O ser humano, no estágio evolutivo em que se encontra, transita em meio a relativismos que nos distanciam muito da capacidade de definirmos, entendermos e sentirmos Deus. As religiões criaram um deus à sua própria imagem, pessoalizado, antropomorfizado. O espiritismo, adotando uma postura marcadamente deísta, e não teísta, transita na busca de mais amplas concepções acerca dessa “Inteligência Suprema”.

Alexandre Cardia Machado

Membro do Conselho Fiscal da CEPA. Presidente do ICKS – Instituto Cultural Kardecista de Santos.

No final da década de 70 do século passado começou a surgir no Movimento Espírita, com alguma força, um sopro de mudanças. Algo que nos aproximou de um Espiritismo mais global, desvinculado da FEB (Federação Espírita Brasileira). Este sopro se transforma na década seguinte em ventania.

Muitos centros espíritas brasileiros se aproximaram da CEPA. Eram tempos de abertura política no Brasil e também de queda da União Soviética, ares de liberdade no ar aqui no Brasil e no mundo.

Depois de duas décadas de diversos articulistas escreverem sobre o foco central do Espiritismo ser ou não ser uma religião, fica claro que as diferenças entre as visões divergentes entre o grupo religioso e o laico pesavam muito mais do que as semelhanças, ocasionando inevitavelmente o rompimento entre as partes.

No Brasil, a grande maioria dos espíritas se identifica com o Espiritismo Religioso, seguindo as orientações da FEB e outras lideranças cristãs, pois para um país majoritariamente cristão esta mudança para o Espiritismo cristão se dá de forma muito suave. O Espiritismo religioso leva ao extremo a importância de Jesus, considerado o Governador do Planeta Terra. Este grupo está bem acomodado, nesta posição.

Mas Kardec estabeleceu, há 166 anos que o Espiritismo era progressivo, todos concordam, sejam eles religiosos ou não, mas poucos aplicam esta ideia na prática.

O nosso grupo, laico, sim, partiu para isto em todo o Brasil. Surgem grupos que estudam criticamente o Espiritismo, comparando, o tempo todo, nossa doutrina com o progresso do conhecimento, na forma como proposta por Allan Kardec.

Este grupo laico, que vou chamar aqui de Espíritas Progressivos, pois não apenas progressistas fazem parte dele, existem pessoas com diversas orientações ideológicas. É um grupo formado por pessoas que veem a necessidade de atualizar o pensamento espírita, para fazer com que o Espiritismo possa contribuir para a sociedade do século XXI e que consiga sobreviver a este século chegando no século XXII respirando.

Não queremos um movimento religioso, mas sim um movimento capaz de comunicar uma visão transcendente, conectada com a sociedade, à humanidade, capaz de fazer as pessoas pensar na possibilidade da imortalidade dinâmica.

Somos todos espíritos encarnados e em evolução, devemos beber e comer da árvore do conhecimento.

Em 1987, no primeiro ano do Jornal Abertura, de Santos-SP, Brasil, na sua edição de julho, Jaci Régis pergunta, em matéria de capa do jornal: O Espiritismo é progressivo?

Jaci, lá pelas tantas assim se refere: "Todos querem mudar. Juram que aceitam que a Doutrina não pode cristalizar-se. Interessante, pois, saber como o movimento espírita brasileiro reage e concretiza o sonho e a necessidade do progresso do pensamento espírita" . Está claro que não há qualquer forma organizada de atualização no Espiritismo Religioso.

Jaci Régis fez a sua parte, nos deixou os seus livros, fez inúmeras palestras, fundou um jornal, criou o Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, abriu uma vereda. Não foi o único, pois assim como ele, outros tantos, no Brasil e mundo afora, seguem caminhos parecidos. Hoje somos nós, a nossa geração, que levamos este projeto adiante. 

Nosso Momento

A revolução das comunicações, a partir da internet, e mais fortemente, nos últimos dez anos, nos fez ter peso, presença sentida e incômoda, aos Espíritas Religiosos que de certa forma, começam a reagir e a nos atacar novamente.

Neste momento estamos muito mais presentes através de canais no Youtube, sites, blogs, eventos pelo Brasil e mundo afora e palestras online. Isto nos aproxima do espírita que não é extremamente ligado a um centro espírita.

Diversas iniciativas de disponibilizar livros com nossas ideias de maneira gratuita de igual maneira aumentam nossa penetração, pois estas pessoas têm livre acesso a livros que de outra maneira estariam no index proibido pela FEB.

Não é fácil, vivemos um momento de indignação, todos estão indignados com alguma coisa, nossa sociedade sofre de um processo de indignação seletiva. Só aceitamos o que nos é espelho. Assim os Espíritas Religiosos se indignam do que fazemos e de certa forma, vice-versa. Não criamos pontes, o fato de termos espaço para expormos nossas ideias, de alguma forma tendem a transformá-las em ideias radicais. Não acredito que sair muito do caminho do meio seja uma estratégia espírita ética desejável.

Por isto a disponibilidade destas obras grátis, podem funcionar como um caminho para que novas ideias penetrem outros espaços. O tempo dirá.

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José Arroyo

Vice-presidente Regional da CEPA para América Central e Caribe

A Palavra da CEPA

Para muitos de nós haverá de soar familiar a frase “arruma teu quarto”. Seja porque a recordamos de nossa infância ou porque a tenhamos utilizado nos anos de infância e adolescência de outros. Parte da premissa de que há desordem no aposento, cria-se a expectativa de que haja ordem, sugerindo-se à pessoa encarregada daquele espaço que compreenda o que se espera. Possivelmente tenha sido voltar a ver o fruto de se ter “arrumado o quarto” e encontrar coisas amontoadas em outro lugar, empilhadas em uma esquina ou simplesmente empilhadas com igual desarrumação de um ponto do quarto para outro.

Essa cena quotidiana para muitos pode-nos servir de grande ensinamento sobre a vida própria e a vida em sociedade, assim como de porquê, às vezes, repetir “amar o próximo como a si mesmo” não é suficiente para alguns.

A pessoa que gerou a desordem sente-se dona desse espaço. Arruma-o e o desarruma a seu gosto. Possivelmente o que outros veem como desordem seja uma maneira distinta de deixar acessíveis suas coisas. O que é ordem para uns é visto como desordem por outros. A expectativa do outro com relação ao que implica em ordem esperada é fonte de frustração e exasperação para alguns adultos. O que eu esperava não coincidiu com o resultado obtido. Entretanto, a partir da outra perspectiva, daquela de quem recebeu a ordem de arrumar, o que parecia prático e factível, foi efetivamente relocalizado para não mais estorvar. Cumpriu-se da melhor forma compreendida. Se analisarmos essa cena à distância e objetivamente, buscando explorar ambas as perspectivas, os dois estariam corretos, sem intenção danosa, malevolências ou desejos de incomodar em qualquer das ações, a de exigir ordem e a de ordenar de alguma maneira.

Se a comunicação fosse efetiva e assertiva, tudo ficaria claro e se evitariam os mal-entendidos, as interpretações parciais.

Muitos indivíduos passam a vida pensando que dizer e repetir palavras ou frases nobres são traduzidos de igual maneira para todos e são interpretadas de maneira universal.

Não é assim.

O contexto, a intenção e a clara indicação do que se espera e significa podem ajudar a comunicar mensagens que efetivamente sejam claramente compreendidas. Pensar que toda a pessoa que abraça uma crença, uma fé ou uma espiritualidade de forma particular entende tudo de maneira clara, cria uma falsa expectativa. Vemos isso diariamente.

Todos os indivíduos que se movem num contexto cultural de influência judaico-cristã estão familiarizados com a frase “amar o próximo como a si mesmo”. Contudo, ela se presta a múltiplas interpretações.

Um grupo de indivíduos pensa que a mulher não deve ocupar o mesmo espaço que o homem em sua congregação. Esta não pode pregar no interior do salão de culto, mas somente fora dele. Aceitam que o homem é a cabeça da família e a mulher lhe deve obediência. Não apenas assim veem os homens dessa fé, mas também as mulheres do mesmo culto o admitem. Enfim, eles estão “amando o próximo como a si mesmo”, porque não estão agredindo amedrontando ou menosprezando a mulher, segundo sua perspectiva, mas lhe oferecendo uma perspectiva distinta e protegendo-a para que se dedique a outras tarefas. Essas pessoas estão cumprindo com o amar ao próximo como si mesmos, de maneira literal a partir de sua visão, não, contudo, de forma equitativa e ampla.

Um outro exemplo: os seguidores de certa seita entendem que o mundo inteiro devia ser convertido a suas ideias. Criaram missões mundiais e saíram a convencer a todos. Enviam seus jovens a países distantes de seus lares para que ajudem as pessoas que possam, acompanhe os anciões solitários em seus lares e estudem junto a eles seus livros sagrados, com o fim posterior de lhes convencer de que seu caminho é correto.

Por outro lado, os indivíduos que tivessem uma cor de pele que não fosse clara, branquela, pura, seriam os herdeiros de uma maldição divina e não poderiam aspirar posições, lugares ou voz e voto na administração de determinada igreja. Claramente, tudo isso mudou quando, subitamente, suas correntes de seguidores passaram a ser majoritariamente de tez escura, e uma “revelação divina” lhes indicou que era preciso reinterpretar o texto sagrado e sua doutrina. Todas essas pessoas estavam amando o próximo, mas agiam com preconceito, segregação e discriminação.

Assim como esses dois exemplos da vida real, poderíamos citar muitos outros que conhecemos nesse amplo e escabroso campo da fé e da crença. Amar o próximo como a si mesmo não é um comando acompanhado de claras instruções, porque está sujeito à interpretação, à justificação e à conveniência de quem lidera e daqueles que cegamente seguem. Se ao falarmos em amar o próximo não incluímos conceitos como equidade, igualdade, inclusão, respeito, desinteresse, justiça, educação, liberdade, pluralismo, alteridade, oportunidade, homo afetividade, desenvolvimento e responsabilidade, não estamos falando o mesmo idioma.

Em uma realidade na qual as palavras predominam sobre o pensamento que as gera; em uma encarnação na qual as palavras podem ser habilmente manejadas para levar a um significado diferente; em uma etapa transitória em que as palavras possam ser acomodadas às nossas conveniências, é inegável a necessidade de explicar, ampliar, abundar e ser concisos naquilo que se pretende comunicar. “...As crenças reprováveis são aquelas que arrastam ao mal”, indica-nos a questão 838 de O Livro dos Espíritos. Se levar as pessoas a incorporar atitudes machistas, excludentes, racistas, classistas, xenofóbicas, homo fóbicas e discriminatórias, não é arrastar ao mal, então não teremos compreendido nada do que seja a mensagem espírita.

Por isso, amar o próximo como a si mesmo será suficiente apenas quando tenhamos como perspectiva tudo o que isso implica para o bem absoluto de outros, assim como para si próprio.

JON AIZPÚRUA

Ex-presidente da CEPA (1993/2000) e atual Assessor de Relações Internacionais

Trinta e três perguntas dirigidas à consciência dos espíritas:

Quantos espíritas são fiéis a umas ideias em vez de ser docilmente leais a umas siglas?

Quantos espíritas admiram alguém que não pense como eles?

Quantos espíritas se permitem ter dúvidas sobre algumas de suas crenças, sustentadas nos ensinamentos de autores encarnados ou desencarnados?

Quantos espíritas se atrevem a questionar ideias expostas por seus autores fundamentais?

Quantos espíritas assumem que no Espiritismo não se trata de crer mas de saber?

Quantos espíritas sucumbem à adoração reverente dos médiuns e dos espíritos?

Quantos espíritas examinam com senso crítico as comunicações mediúnicas?

Quantos espíritas adotam em sua vida a prática quotidiana da leitura e do estudo de textos espíritas e de outras orientações filosóficas?

Quantos espíritas são capazes de superar as interpretações literais?

Quantos espíritas estão dispostos a mudar algumas de suas opiniões?

Quantos espíritas leem ou escutam outros espíritas que pensam diferente?

Quantos espíritas antepõem os ideais e a ambição pelos cargos nas instituições espíritas?

Quantos espíritas exigem mais de si mesmos do que dos demais?

Quantos espíritas acorrem a um debate sem haver decidido previamente quem é seu favorito?

Quantos espíritas estão dispostos a aprender com aqueles que expressam ideias divergentes das suas?

Quantos espíritas compreendem que o amor, entendido e praticado, é o fundamento da vida e da evolução?

Quantos espíritas permitiram-se amar alguém com uma ideologia diferente?

Quantos espíritas consideram que não são necessariamente melhores que seu vizinho?

Quantos espíritas sabem perdoar?

Quantos espíritas preocupam-se com as questões sociais e entendem a necessidade de analisá-las e de se pronunciar sobre elas?

Quantos espíritas tomam consciência das injustiças sociais, a fome e a miséria que maltrata milhões de seres humanos e não buscam justificá-las como “dívidas” e “expiações” de vidas anteriores?

Quantos espíritas oferecem o concurso de sua participação ativa para corrigir os males que afetam a humanidade e atrasam seu processo evolutivo?

Quantos espíritas estão completamente à margem de teorias ou práticas discriminatórias, homofóbicas, racistas e xenofóbicas?

Quantos espíritas denunciam o horror e o sofrimento provocado por regimes teocráticos, fundamentalistas e fanáticos?

Quantos espíritas creem realmente na igualdade entre todos os seres humanos?

Quantos espíritas assumem a vigência da liberdade individual, social e política, como requisito indispensável para o progresso material e espiritual?

Quantos espíritas respaldam a liberdade e a democracia para todas as nações, sustentadas no pluralismo político, separação de poderes, liberdade de expressão e de reunião, e eleições limpas para a escolha dos governantes?

Quantos espíritas denunciam os regimes tirânicos ou autoritários, com independência do viés ideolótico ou político que os identifica?

Quantos espíritas estão dispostos a censurar a corrupção, no âmbito público ou privado, sem matizes, atenuantes nem exceção?

Quantos espíritas estão dispostos a defender o império das leis no quadro do estado de direito, ainda quando podem se ver afetados seus interesses particulares?

Quantos espíritas promovem a paz no mundo sobre a base da coexistência respeitosa entre as nações e rechaçam as guerras e o uso da força das armas para conquistar territórios?

Quantos espíritas compreendem que não há um “além” feliz para os desencarnados se não se constrói um “aqui” justo, equilibrado, harmônico e fraterno?

A quantos espíritas, finalmente, importa o espiritismo?

A CEPA, como entidade kardecista, laica, livre-pensadora, humanista, pluralista, progressiva e progressista, constitui um espaço aberto no qual se sintam cômodos todos os espíritas que se impressionem e reflitam diante de perguntas como estas e decidam, como sugeria Kardec, atrever-se a pensar, a privilegiar a razão e antepor os valores éticos como guias de suas convicções. Isso é indispensável para a consolidação de um movimento espírita que possa contemplar sem complexos o século XXI e enfrentar com êxito seus enormes desafios.

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