Milton Medran Moreira

Assessor de Relações Internacionais da CEPA

Lá pelos anos 90 do século passado, visitei uma praia chamada Vanice, na Califórnia. Havia ali uma série de barraquinhas abrigando ativistas, crentes e propagandistas das mais diferentes causas. Via-se um pouco de tudo: gente fazendo campanhas ecológicas, religiosos pregando a Bíblia, ciganas lendo as linhas das mãos e videntes prevendo o futuro de tanta gente curiosa.

Em meio a tudo isso, que alguns poderiam chamar de um verdadeiro “choque de egrégoras”, foi que também lembro ter visto, pela primeira vez, um movimento organizado de ateus com cartazes reivindicando respeito às suas ideias e distribuindo panfletos a quem passasse.

Os ateus, num país e num continente onde o fundamentalismo cristão tem, ainda hoje, um peso significativo, inclusive com fortes influências na política e em importantes decisões judiciais dos tribunais superiores acerca de costumes, começavam, ali, a deixar de esconder suas verdadeiras ideias. Protestavam contra as impregnações teístas da sociedade organizada e reivindicavam, mais do que um Estado laico, um Estado ateu.

Desde então, tem crescido muito, em todo o mundo ocidental, o que poderia se chamar da onda ateísta. Na verdade, tem se tornado moda dizer-se ateu. Artistas, escritores, cronistas, intelectuais, especialmente depois de alguns best-sellers sobre ateísmo, encorajam-se a proclamar sua não crença em uma divindade. Mas, invariavelmente, quando se referem a Deus, o fazem a partir dos conceitos de divindade criados pelas religiões. O deus pessoal judaico-cristão, o deus criador de todas as coisas, que fez tudo do nada, é aquele geralmente negado pelos ateístas. Muitos deles guardam, inclusive, convicções, ou, pelo menos, alguma simpatia à tese da sobrevivência do espírito após a morte. Mas não conseguem conpatibilizar o deus das religiões monoteístas com um esquema de vida minimamente racional e que obedeça a leis inteligentes, capazes de extrapolar a matéria grosseira em que estamos envolvidos.

O espiritismo propõe um conceito de Deus que vai muito além daquele criado pelas religiões. Ao afirmar que “Deus é a inteligência suprema e a causa primeira de todas as coisas”, o espiritismo desantropomorfiza-o e o apresenta como a grande Consciência Universal.

Esse conceito é compatível com as tendências da ciência moderna. Amit Goswami, um dos mais proeminentes físicos da atualidade, no seu livro “O Universo Autoconsciene”, sustenta que o Universo seria matematicamente inconsistente sem a presença de uma inteligência superior. Ele prognostica que, neste século, Deus deixará de ser um tema das religiões para tornar-se uma questão das ciências.

Não faz sentido reduzir Deus a uma crença. Ele não é uma questão de fé, imposta pelo medo ou mesmo como busca de recompensa futura. Ele é algo (algo e não alguém), reclamado como indispensável para minimamente se entender acerca da fascinante ordem a sustentar o universo.

Mesmo sendo um dos princípios basilares do espiritismo, a existência de Deus, entretanto, não é sua questão central. A grande questão do espiritismo é o ESPÍRITO, definido na questão número 23 de O Livro dos Espíritos, como "princípio inteligente do universo”.

Com muita propriedade, e com o intuito de afastar definitivamente do espiritismo a condição de uma crença, centrada na divindade tal como a concebem as religiões monoteístas, Jaci Regis, que nos deixou naquele 13 de dezembro de 2010, desencarnou propondo que o espiritismo se tornasse a verdadeira “ciência da alma”, porque aí está o objeto essencial de sua proposta de conhecimento.

O dia que dispusermos de um sólido conjunto comprobatório da realidade do espírito, de sua sobrevivência após a morte e de sua essencialidade como o verdadeiro agente da consciência humana, estaremos abrindo caminho para a compreensão de consciências sobre-humanas e, daí, a uma Consciência Universal, acima da qual não se possa conceber qualquer outra inteligência.

MAIS UM CICLO SE INICIA

2020 seria um ano para se esquecer?

Sobre o tempo, temos plena convicção: Passa rápido! Tudo passa nesta vida, a energia, a beleza, a juventude; Passam as alegrias e os sucessos, mas também a escuridão. Cada momento é valioso, o que faz da vida oportunidade em plenitude!

Quando viramos o ano, costumeiramente externamos muitos votos de alegria, sucesso, vida e saúde àqueles a quem amamos, mas talvez nunca tenhamos feito isso com tanta ênfase e emoção, como agora, no limiar de 2021.

Muita gente continua ainda contagiada por um sentimento estranho, inédito, desconfiado: “Meu Deus, até quando?” O Conselho Executivo da CEPA externa aqui a esperança de que todos os leitores vivam uma experiência maravilhosa, positiva e muito produtiva em 2021!

Compreende-se perfeitamente a tristeza, o incômodo, a dificuldade de viver uma virada de ano em condições tão diferentes. Sempre festejamos a chegada de um ano novo, comemoramos as conquistas e desejamos seguir firmes, livres e exitosos no novo período, mas desta vez tudo foi muito anormal. Parecia que nosso desejo seria dizer: “ Ok, 2020, que bom tê-lo superado; por favor, fique para traz, apaguemo-lo de nossa memória. Será muito bom desbravar 2021; que venham novas edificações, descobertas, mudança de rumos!

De fato, 2020 não foi um ano bom para ninguém, nem mesmo para quem sobreviveu à enfermidade, tampouco para quem conseguiu transformar a pandemia em oportunidade para faturar; não, não vivemos em torno dos nossos interesses exclusivos. Por mais que o egoísmo ainda seja uma característica marcante da humanidade terrena, fomos todos impactados por milhões de mortes em um único ano, muitas pessoas sequeladas, muitas arruinadas financeiramente. Somos ao mesmo tempo agentes e pacientes das ações humanas, de modo que um acontecimento de proporção mundial como este impacta realmente a todos. Em menor, ou maior grau, todos fomos atingidos severamente. O isolamento social que nos impusemos foi um efeito de abrangência geral.

Não obstante, descortinou-se para o mundo uma infinidade de oportunidades. As pessoas aprenderam o significado do distanciamento obrigatório, tiveram de se reinventar na solidão, descobriram novas formas de produzir e de auferir renda, adaptaram-se às tecnologias, permaneceram mais em casa, abdicaram dos veículos automotores, leram mais, viram mais filmes, produziram mais. Certamente, vai passar, pois tudo passa na vida, e não terá deixado apenas rastros de dor.

Talvez no futuro possamos revisitar este tempo e concluir que foi apenas uma experiência, nem só dores, nem só realizações. Um período marcante, vivido intensamente por alguns, sofrido demais por outros, marcado por tragédias, estultices, corrupção e mortes. Lado outro, houve avanços também. Inexoravelmente nos lembraremos de que muitas construções positivas foram computadas neste período de pandemia, sendo certo que a solidariedade ganhou destaque absoluto.

A filosofia espírita nos ensina que cada instante é uma oportunidade ímpar e que a vida é uma dádiva para o espírito em crescimento, sendo esse o motivo de estarmos agradecidos por termos passado por mais uma virada de ano, como se o universo estivesse nos concedendo a oportunidade de realizar um pouco mais, sermos mais úteis, crescermos, enfim.

Digamos muito obrigada a 2020 por tudo que nos permitiu ver e aprender; por termos resistido, por termos crescido. Que iniciemos 2021 com a esperança de sermos um pouco melhores!

Ademar Arthur Chioro dos Reis

Assessor Especial da Presidência da CEPA

A pandemia de Covid-19 provocou mudanças substantivas nos modos de viver em todos os cantos do planeta. Provocada pelo SARS-coV-2, um novo coronavírus altamente transmissível, ainda não possui tratamento antigripal específico e vacinas, a despeito dos enormes esforços empreendidos e a velocidade estonteante com que a comunidade científica vem produzindo conhecimentos.

Nessa emergência sanitária de escala global são as medidas de controle “não-medicamentosas” que têm demonstrado impactos mais significativos sobre a Covid-19: uso de máscaras, higiene pessoal e coletiva, e isolamento social, lockdown ou quarentena, como têm sido denominadas as estratégias que buscam interromper a circulação do vírus por meio da diminuição do contato entre as pessoas que não estão diretamente envolvidas em atividades consideradas essenciais.

Tais medidas são apontadas pelas autoridades sanitárias, médicos e cientistas como as únicas efetivas para o enfrentamento dessa enfermidade que, até 15 de agosto, já tinha registrado 21.387.785 casos e 764.110 óbitos em todo o mundo.

O isolamento social tem sido cumprido rigorosamente nos países que obtiveram melhores resultados no controle epidêmico, mas de forma precária naqueles marcados pela desigualdade social, onde partes significativas da população vivem em moradias extremamente precárias e não conseguem cumprir as medidas indicadas por falta de condições econômicas, que os obriga a se exporem em busca de garantir a sobrevivência. O mesmo vem acontecendo em países onde os dirigentes políticos assumem uma postura negacionista, anticientífica, descomprometida com a defesa da vida e a proteção das populações mais vulneráveis.

            Fato é que a pandemia atingiu, de diferentes maneiras, os mais diversos campos: alterou as rotinas de trabalho, as formas de relacionamento, os meios de comunicação. Mudou profundamente nossas rotinas, gerando o que se vem chamando de o “novo normal”. Também atingiu em cheio a CEPA.

O XXIII Congresso Espírita da CEPA, programado para outubro de 2020, na Espanha, teve que ser adiado para 2021. As atividades presenciais das nossas instituições desde o início da pandemia foram suspensas.

Como será a vida no mundo pós-pandemia é ainda uma incógnita; temos muitas perguntas e, por enquanto, poucas respostas. Uma delas é que as atividades espíritas e de suas organizações, como hoje entendidas, serão profundamente reconfiguradas no “novo normal”.

Ferramentas digitais utilizadas durante o período de isolamento social serão definitivamente incorporadas como estratégias de estudo e divulgação do espiritismo e poderão ser expandidas, tomando conta de todos os domínios, sem fronteiras e limites que foram, historicamente, impostos ao pensamento espírita crítico advogado pela CEPA, colocando-se como dispositivos a serviço da disseminação do pensamento espírita progressista, laico e livre-pensador.

Instituições vinculadas à CEPA, como o CIMA (Venezuela), a Sociedad Espiritismo Verdadero (Argentina), o Centro Espírita Allan Kardec de Santos-SP e o CPDoc (no Brasil), a Escuela Espírita Allan Kardec (Porto Rico), apenas para dar alguns exemplos, rapidamente passaram a oferecer conferências, cursos e reuniões de estudos virtuais, proporcionando não apenas a oportunidade de manter atividades para suas comunidades, como também a de alargar a participação de espíritas de todo o mundo, internacionalizando suas ações e permitindo um compartilhamento de experiências inéditas e que podem ser profundamente transformadoras.

A exemplo do que ocorreu nas mais diversas esferas de participação, nunca antes tantos espíritas vinculados à CEPA foram convidados a participar de lives, debates e a fazer conferências virtuais como nesse período, resultando num intercâmbio saudável e produtivo com espíritas de todas as partes do mundo. Sem contar o uso intenso de mídias sociais como os grupos de WhatsApp, o Facebook, Youtube, Instagram, etc., em que pese a enxurrada de informações e as fakenews. Isso tem sido enriquecedor, afinal é na diversidade de ideias e na possibilidade do exercício de um pensamento crítico que se pode produzir avanços e dinamizar o espiritismo.

É hora de valorizar e explorar essas múltiplas possibilidades, mas também de compreender que não substituirão as atividades presenciais, que acolhem e permitem encontros, trocas de afetos e energias e que produzem e reforçam o sentimento de pertença, fundamentais para a produção de vínculos e socialização. São elementos de ordem imaterial, subjetivos, que os meios eletrônicos, ainda que apresentem outras vantagens, jamais poderão substituir.

Por fim, terminamos essa mensagem, que chega a você por um dos meios eletrônicos aqui discutidos, para manifestar a solidariedade da CEPA a todas as famílias que perderam seus entes queridos nessa pandemia, assim como o nosso reconhecimento aos trabalhadores da saúde em todo o mundo, que não têm poupado esforços para cuidar dos enfermos e controlar a pandemia, colocando em risco suas próprias vidas.

Jacira Jacinto da Silva

Advogada, Presidente da CEPA – Associação Espírita Internacional

Ser criança, é ter liberdade para viver a infância com qualidade. Ser criança, é ter direito à moradia adequada, à alimentação saudável e a uma boa educação. Ser criança, é poder ser amado, protegido e feliz. Simples assim.

Isa Colli.

Foi em 20 de novembro de 1989 que a Assembleia Geral das Nações Unidas – ONU adotou a

Poder-se-ia questionar o motivo de tantas e novas leis; afinal, já existe a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cada país tem a sua Constituição Federal, ou o seu Estatuto legislativo maior, contemplando os direitos vigentes para aquele povo, naquele tempo. Mas esses comandos legais gerais, em regra, não atingem seus objetivos e a população termina por contorná-los, de forma que apesar de serem importantes e aplicáveis, são ignorados. Claro que cada país tem as suas peculiaridades e, inclusive, há níveis muito diferentes de tolerância à desobediência.

Disso resultam legislações específicas, tratando de um único tema, como a proteção da criança, o crime de racismo, a proteção ambiental, os direitos do idoso, a proteção de dados pessoais etc. Em síntese, essas legislações especiais não seriam necessárias se as pessoas atentassem à obrigação de cumprir os comandos gerais.

Fato é que 196 países ratificaram a Convenção dos Direitos da Criança, adotada pela ONU há 31 anos.

Conquanto saibamos das limitações existentes na legislação humana, seus defeitos, seus vieses, suas motivações – muitas vezes particulares e indignas, ainda podemos dizer que sem ela estaríamos em condições piores. É a legislação humana que garante, minimamente, a convivência social.

A renovação das leis também faz sentido se pensarmos que, na resposta à questão 763 de

No mesmo sentido, a resposta à questão 616: “

E mais não precisaria para nos convencermos de que as leis humanas são transitórias, divergentes, impotentes para solucionar os conflitos humanos, embora apropriadas à cultura de cada povo.

Vale destacar ainda o enunciado contido na Q. 521:

[os grifos são meus] (P

A tendência mundial de proteger as crianças e os adolescentes, garantindo-lhes formação digna, educação, moradia, estudo, saúde, cultura, lazer e todos os cuidados necessários à sua boa formação, estão perfeitamente conformes com a lição espírita encontrada no capítulo de

A infância ainda tem outra utilidade. Os Espíritos só entram na vida corporal para se aperfeiçoarem, para se melhorarem. A delicadeza da idade infantil os torna brandos, acessíveis aos conselhos da experiência e dos que devam fazê-los progredir. Nessa fase é que se lhes pode reformar os caracteres e reprimir os maus pendores. Tal o dever que Deus impôs aos pais, missão sagrada de que terão de dar contas. Assim, portanto, a infância é não só útil, necessária, indispensável, mas também consequência natural das leis que Deus estabeleceu e que regem o Universo.” 1

Não obstante, há quem considere o Estatuto dos direitos da criança e do adolescente um equívoco, atribuindo-lhe excessiva proteção e muitos direitos sem o correspondente rol de obrigações.

No Brasil, para os leitores terem noção da importância de regulamentar direitos às chamadas minorias (essa denominação destina-se apenas a classificar as pessoas excluídas da atenção e dos direitos naturalmente consagrados aos demais), em 1990 tínhamos aproximadamente 20% das crianças e adolescentes fora da escola - em 2017 esse percentual se reduziu a 4,7%; em 1990, 13,4% deles se achavam em estado de desnutrição crônica - em 2017 contaram-se 6,7%; as mortes por mil nascidos vivos caíram de 53,7 para 15,6 nesse período e a taxa média de analfabetismo entre crianças/jovens de 10 a 18 anos de idade diminuiu de 12,5% em 1990 para 1,4% em 2013.

Documento do UNICEF indica que, a partir da entrada em vigor do Estatuto, decisões judiciais passaram a assegurar a doação de próteses e órteses por parte do Estado, garantiram a contratação de professores de libras e auxiliares para acompanhar crianças autistas e com deficiência em escolas públicas e ampliaram as vagas em creches

Países em desenvolvimento carecem, ainda, da garantia a direitos básicos e elementares. Lamentavelmente a corrupção e o atraso dos governantes impedem ainda mais o acesso aos bens públicos. No Brasil, apesar das ações ajuizadas para processar administradores públicos, como o Prefeito da cidade de São Paulo, por exemplo, em julho de 2020 a fila de espera por vagas em creches dessa metrópole tinha 22,3 mil crianças, conforme dados da Secretaria Municipal de Ensino.

Aos espíritas, afinados à CEPA ou não, compete o dever de defender os direitos das crianças e dos adolescentes a uma formação digna. A lição espírita nos conduz à tarefa de contribuir para a melhoria das condições de vida para todos e em especial para crianças e adolescentes, por se tratar de pessoas em especial e peculiar condição de desenvolvimento.

Analisando o valor de uma existência na terra, bem assim a grande potencialidade para o aprendizado, não se pode desprezar nenhuma chance de se inculcar valores éticos em crianças e adolescentes, pois se encontram abertos, receptivos, disponíveis para esse exercício.

Estamos sempre às voltas com as grandes dificuldades nas relações humanas, os problemas governamentais, a desigualdade social, a ausência de proteção ambiental e tantas outras questões que impactam diretamente a vida de todos.

Esta Palavra da CEPA destina-se a convidar os leitores para refletirem sobre a responsabilidade de conduzir uma vida humana desde as suas primeiras manifestações; não descurar do dever de educar e educar-se, pois o convívio com um espírito que chega ao lar é sempre uma grande oportunidade de crescimento coletivo. Ademais, não poderia haver forma mais adequada e esperançosa para sanar as mazelas do mundo do que forjar novas cabeças, comprometidas, responsáveis e cientes do dever de todos, como indicado na questão 132 de

Há gente procurando oportunidade para dar a sua contribuição. Não poderia haver trabalho mais significativo e produtivo do que realizar ações, como já fazem diversos grupos espíritas – e não espíritas também, na área da educação. Aderir a movimentos sociais que lutam pela dignidade da educação pública, livre, laica e gratuita, abrirá um campo de trabalho inesgotável e de extrema valia.

O mundo carece por demais desse trabalho qualificado, que exige dedicação, esforço e persistência em busca da melhor educação. Especialmente espíritas, sabedores do valor de uma boa formação para a individualidade do espírito, têm motivos de sobra para trabalhar nesta causa.

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1 O Livro dos Espíritos, Q. 385, parte final.

2 QUEIROZ, Cristina e CHAVES, Léo Ramos. Revista FAPESP, n. 296, p. 37

Jon Aizpúrua
Ex-presidente da CEPA (1993/2000) e atual Assessor de Relações Internacionais

Denomina-se como laicidade à concepção da vida na qual defende-se a ausência de religião oficial na direção dos Estados, enquanto que por laicismo entende-se o movimento histórico que reivindica a implantação da laicidade.

Sobre a base de seus fundamentos humanistas, sociológicos e morais, assume-se que a laicidade estabelece um vínculo comum entre as pessoas e facilita que elas convivam respeitosa e cordialmente, processando suas diferentes opiniões em um âmbito civilizado, de liberdade e igualdade. Os princípios laicos de liberdade de consciência, de pensamento, de expressão e de organização; a igualdade de direitos e obrigações, assim como a justiça social, constituem a própria essência do sistema democrático.

É conveniente salientar que um Estado laico e, portanto, não confessional, não implica seja antirreligioso ou ateu. Toda a crença religiosa é respeitável e deve sempre garantir-se a seus adeptos o direito de vivê-la intimamente, compartilhando-a com quem se deseje e difundi-la sem restrições. Diferente há de ser o clericalismo e suas pretensões de gozar de privilégios especiais no âmbito social, situar-se por sobre ou à margem da normativa civil ou jurídica, ou impor critérios teológicos em assuntos morais, científicos ou educativos.

Felizmente, uma porção considerável da humanidade evoluiu no sentido de uma concepção laica que coloca em seus precisos termos a relação entre o mundo civil e o religioso, os Estados e as Igrejas. No mundo ocidental, com maior força, vive-se, cada vez mais, em uma sociedade pós-cristã. Esse tipo de sociedade teve início na Europa a partir do Renascimento, converteu-se em um projeto com o Iluminismo, generalizou-se entre as massas cristãs na segunda metade do século XX e foi se estendendo à América e a outros países influenciados pela cultura ocidental. A partir de um ponto de vista sociológico, não tão religioso, essas sociedades podem qualificar-se de pós-cristãs, o que significa que a cosmovisão baseada no cristianismo, em torno da qual girou a vida individual e social durante séculos, vai deixando de ser sua coluna vertebral. Essa mudança progressiva de cosmovisão na tradição cristã ocidental foi-se manifestando em muitas expressões culturais que estão sendo transformadas ou abandonadas:

  • As festas religiosas determinavam o calendário civil e trabalhista. Agora se eliminaram a maioria delas, embora sigam sendo muito importantes o Natal e a Semana Santa, não tanto no sentido religioso, mas como ocasião de viver em família e oportunidade para férias em campos e praias. O mesmo ocorreu com as festas patronais das pequenas localidades que eram dedicadas a um santo e que agora são apenas o motivo para celebrações civis e folclóricas

  • Os nomes que os pais davam a seus filhos eram buscados no calendário santo e que agora são apenas motivo de celebrações civis e folclóricas. Hoje se lhes põem nomes inventados, surgidos de combinações originais, muitas vezes estranhas e até impronunciáveis.

  • Muitas manifestações públicas, como procissões, romarias ou peregrinações, foram se despojando de seu sentido religioso original e se vão convertendo em festas folclóricas e populares, que costumam se aproveitadas pelos líderes políticos para promover sua imagem pessoal com fins eleitorais.

  • Em muitos países da órbita cristã, o registro eclesiástico de batizados e matrimônios era utilizado pelos Estados como registro civil. Há muito tempo que ambos registros obedecem a propósitos diferentes e somente o civil é obrigatório e possui efeitos legais.

  • Os símbolos religiosos cristãos, como o crucifixo ou o juramento pela Bíblia, eram frequentes em âmbito público, como escolas e repartições governamentais. Cada vez mais se impõe a tendência de suprimir qualquer exibição religiosa pública e se reduz a presença de autoridades civis a atos religiosos, reservando-se nada mais que aqueles de especial solenidade.

  • A moral estabelecida pelos cultos cristãos impunha as regras para o comportamento dos cidadãos. Atualmente discutem-se, questionam-se ou se rechaçam muitos desses critérios e comportamentos, especialmente no âmbito da sexualidade e da legítima diversidade de opções que cada pessoa tem direito de escolher sem ser discriminada ou estigmatizada.

  • A linguagem religiosa perdeu atualidade, pertinência e relevância social. Palavras e expressões como pecado, céu e inferno, salvação, culpa, penas eternas, castigos divinos, etc. foram desaparecendo do linguajar corrente e circunscrevendo-se aos atos de culto.

  • Em matéria educativa pública, já não se discute a primordial competência do Estado, ficando reservado o ensino da religião ao âmbito familiar e das organizações eclesiásticas.

  • “Crentes mas não praticantes” declaram-se muitos hoje em dia. Essa é outra característica da sociedade pós-cristã que merece atenção. Expressa-se de muitas formas: “Eu creio em Deus, mas não nos sacerdotes”, “eu me confesso diretamente a Deus, não com um homem”, “a Igreja reprime minha liberdade”, etc. Nestas e outras manifestações reflete-se uma espécie de alergia e rechaço às instituições eclesiásticas.

  • Outra característica importante da sociedade pós-cristã é a separação entre confissão religiosa e organização política e social. A liberdade de culto impôs-se nos países modernos e, como consequência, o catolicismo e outras religiões cristãs deixam de gozar de privilégios e vantagens por parte de um Estado que se declara laico. Um governante, incluindo todos os membros de seu governo, podem ser crentes, mas sua fé é um assunto pessoal e não a podem impor ao resto da sociedade.

Como é muito bem sabido, o espiritismo, desde seu início, a partir do ato fundacional que o aparecimento de O Livro dos Espíritos significou, em 1857, desfraldou a bandeira do laicismo, ressaltando o valor irrenunciável da liberdade que permite a cada ser humano administrar suas crenças em matéria de religião, de fé, de transcendência, conforme os ditames de sua razão e sem temor de ser condenado, castigado, anatematizado ou perseguido.

Claro está que o laicismo no qual se inscreve o espiritismo possui uma base inequivocamente espiritualista. Muito distanciado de um laicismo materialista e ateu que promove a indiferença frente às perguntas radicais da existência humana: sua origem e destino, assim como sua referência centrada em uma explicação exclusivamente física, química, biológica, psicológica ou sociológica da vida e da morte, o espiritismo reafirma o reconhecimento da existência de Deus como Inteligência suprema e causa primeira de todas as coisas; do espírito como entidade psíquica transcendente que preexiste ao nascimento e sobrevive depois do falecimento; do processo evolutivo ascendente do espírito que se verifica em inumeráveis e sucessivas existências; da incessante comunicação entre desencarnados e encarnados por diversidade de meios; e deriva desses princípios uma cosmovisão humanista e progressista que convida à transformação pessoal e social, no quadro dos mais elevados princípios éticos.

Convidando para a compreensão do sentido espiritual da vida, insistindo no respeito pleno e na liberdade das pessoas e dos povos, e sustentado na razão e na ciência, o espiritismo conduz a uma espiritualidade laica, equidistante do catecismo desesperançoso, do materialismo e do dogmatismo sectário e alheio à ciência e à racionalidade das teologias. Uma espiritualidade aberta e tolerante, que, por sobre a base de princípios universais, promove uma cultura de entendimento, convivência, harmonia, generosidade, solidariedade e fraternidade.

  • Uma cultura de respeito pela vida em todas as suas formas.

  • Uma cultura que garanta o exercício da liberdade de pensamento, consciência e crença.

  • Uma cultura de não violência que promova o encontro e a solução pacífica das controvérsias.

  • Uma cultura da solidariedade que impulsione a criação e a consolidação de uma ordem mundial justa, em que se apaguem as ignominiosas diferenças entre privilegiados e deserdados.

  • Uma cultura da verdade no plano da transmissão da informação e o conhecimento, que erradique a mentira.

  • Uma cultura da igualdade entre os povos, as nacionalidades, as etnias ou identidades sexuais, onde não haja lugar para a discriminação.

  • Uma cultura do trabalho, reconhecido como instrumento fundamental da riqueza social, e que seja devidamente remunerado em um ambiente de relações justas e honestas entre empresários e trabalhadores.

  • Uma cultura que promova o funcionamento democrático no exercício político das nações, sustentada no sufrágio livre e transparente, e que erradique toda a sorte de regimes autoritários e tirânicos, com independência do matiz ideológico com que se identificam.

Conceitos como estes, e muitos outros que se podem acrescentar, integram o que denominamos uma espiritualidade ética de orientação espírita sustentada na cultura do amor, e traduzem em termos concretos e atuais a proposta central de Allan Kardec e dos espíritos sábios que o assessoraram, respeito à marcha evolutiva da humanidade rumo a um horizonte superior que se definiu como “um mundo de regeneração moral e social”.

Muito bem faz nossa Associação Espírita Internacional CEPA em conceituar o espiritismo como uma visão laica, humanista, livre-pensadora, plural e progressista, porque ela coincide cabalmente com o modelo de espiritismo pensado e sonhado por Allan Kardec, seu ilustre fundador e codificador.

Jacira Jacinto da Silva
Presidente de CEPA - Associação Espírita Internacional

Dia 20 de maio é festivo para a CEPA, já que CIMA está completando 62 anos de atividade.

Quando pensamos no Movimento de Cultura CIMA, imediatamente nos lembramos de sua referência maior, o amigo querido e hoje símbolo da CEPA, Jon Aizpúrua, que há mais de 50 anos participa ativamente do trabalho espírita realizado na Venezuela.

Pensar em CIMA e em Jon, é recordar também o mentor dessa história David Grossvater, em cuja personalidade, nosso companheiro Aizpúrua se inspirou desde pronto para os estudos espíritas.

Claramente, CIMA tem nesses dois nomes a sua base e a sustentação maior; todavia, não teria permanecido, evoluído e transcendido a tantas dificuldades enfrentadas no país se não tivessem chegado, sempre, outros companheiros valiosos que puseram suas mãos e mentes a trabalho do espiritismo e do importante movimento da Venezuela que hoje faz aniversário.

O CIMA é uma instituição de grande destaque no cenário espírita internacional, não apenas pelo seu envolvimento perene com a CEPA, mas principalmente pela sua trajetória absolutamente comprometida com os princípios kardecistas, voltada ao estudo e à divulgação desta Filosofia que nos anima a prosseguir sempre. As ações, a dedicação e o posicionamento claro de CIMA sempre denotaram extrema afinidade com o viés humanista, pluralista, progressista e fraterno, tão caro à CEPA.

Estudando e difundindo o espiritismo como filosofia, ciência e moral, jamais compactuou com distorções que tanto comprometeram o espiritismo no Brasil.

A CEPA e os espíritas do mundo identificados com a sua forma livre de absorver as lições espíritas se sentem profundamente honrados e agradecidos pelo esforço percebido nos companheiros espíritas que hoje estão à frente de CIMA, por serem capazes de superar todas as dificuldades do trágico momento sociopolítico enfrentado no país, reinventando-se e propondo mais atividades de difusão do pensamento espírita, a despeito das dificuldades do país e agora também apesar da pandemia.

Em nome do Conselho Executivo da CEPA quero expressar meus efusivos cumprimentos ao movimento de cultura CIMA e a todos os seus trabalhadores, do passado e do presente, por terem a iniciativa, iniciarem e darem prosseguimento a esse trabalho exemplar de autêntica vivência espírita.

Agradecidos, estendemos aos companheiros encarnados e desencarnados um carinhoso abraço, desejando que a equipe esteja unida, que o movimento se reforce e se renove a cada época, seguindo como atuam hoje na condição de exemplo para toda a comunidade espírita do planeta.

JACIRA JACINTO DA SILVA

Presidente da CEPA – Associação Espírita Internacional

20 de maio de 2020

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