Procure em toda a obra de Kardec a palavra “unificação” e não irá encontrá-la (pelo menos, no sentido hoje empregado no meio espírita). A Revista Espírita,
o mais importante laboratório de pesquisa e de exposição de ideias pessoais de Kardec, tem em sua primorosa edição em português um magnífico índice, organizado por seus editores Miguel Grisolia, Júlio Abreu Filho e J.Herculano Pires. O índice geral remissivo da revista mereceu a edição de um volume exclusivo. Ele traz, verbete por verbete, todas as referências possíveis e imagináveis para a facilitação de qualquer pesquisa que o estudioso da obra kardeciana deseje efetuar. Lá, porém, você não encontra o verbete unificação.
Unificação, na conotação popularizada em nosso meio, é típica da cultura espírita brasileira. Seu claro e jamais negado objetivo é de natureza genuinamente religiosa: a preservação de um conjunto de presumíveis verdades, procedimentos e formas de organização capazes de garantir a hegemonia de uma ordem e de um comando pretensamente emanados do “Alto” e delegados a uma instituição, que deverá ser sua guardiã.
Entretanto, palavras como união, unidade, liberdade e tolerância são frequentemente encontradas na obra de Kardec. Mesmo quando ensaiou uma proposta de organização do movimento espírita, sob a coordenação de um Comitê Central, Kardec foi logo ressalvando que este não estaria “destinado a dirigir o mundo e a ser o árbitro universal da verdade”, acrescentando que quem tivesse essa pretensão “teria compreendido mal a essência do Espiritismo, que proclama os princípios do livre exame e da liberdade de consciência, repudiando a ideia de erigir-se em autocracia.” E disse mais: “Pretender que o Espiritismo seja organizado, por toda a parte, da mesma maneira; que os espíritas do mundo inteiro se sujeitem a um regime uniforme, a uma única maneira de proceder; que devam esperar a luz de um ponto fixo para o qual devem voltar seus olhos, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra formassem um dia uma só nação, governada por um chefe único, regida pelo mesmo código de leis, adotando os mesmos costumes”. (Constituição do Espiritismo, em Obras Póstumas).
Mesmo recusando a ideia do modelo único ou de um comando central, Kardec enfatizou a necessidade da união entre os espíritas de todo o mundo A união se daria pela “comunhão de pensamentos”, como definiu no seu Discurso de Abertura (Revista Espírita dezembro 1868). Essa comunhão se haveria de operar de forma natural e espontânea pela comum assimilação dos princípios básicos doutrinários, definidos e analisados em O Livro dos Espíritos, desde o surgimento da doutrina, em 1857 e atualizáveis nos Congressos Espíritas.
No documento antes citado, Allan Kardec previu a formação de “centros gerais nos diferentes países” - o que chamaríamos hoje de Conselhos, Federações, Confederações, Uniões e Associações (como preferiu denominar-se, em seu último Congresso, a CEPA, Associação Espírita Internacional) -, mas que eles não teriam entre si “outro laço senão a comunhão de crença e a solidariedade moral, sem subordinação de uns a outros”, acrescentando, mais adiante: “Os diversos centros que se dedicam ao verdadeiro Espiritismo deverão dar-se as mãos fraternamente, unindo-se para combater seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo”.
Unificação é uma exigência típica de organizações religiosas. É instrumento de manutenção de poder. União é conceito muito mais amplo, compatível com o pluralismo, com o humanismo, onde a tolerância e o diálogo criam e sedimentam vínculos de cooperação e fraternidade.
Em nosso meio, na mesma medida em que avançam os projetos unificacionistas, se enfraquecem os ideais de união, obstaculizando, inclusive, o diálogo entre as diversas vertentes do pensamento espírita e as instituições que as coordenam. Um dos mandamentos do projeto de unificação consiste em fazer de conta que não existem outros segmentos senão aqueles que estão sob suas asas. Unificação passa a ser sinônimo de sectarização.
Unificação é movimento de cima para baixo. União é construção que se faz a partir da reflexão, do debate, do diálogo e do trabalho conjunto, em clima de respeito e de tolerância.
São caminhos diferentes que levam, igualmente, a objetivos diversos. Distinguir um do outro talvez não seja fácil, nem cômodo, mas é vital para o futuro do espiritismo.