Por Colombe Jacquin – Jacques Peccatte – Luc Guntz
O espiritismo, ciência e filosofia do ser, nascido do contato com os espíritos desencarnados e codificado inicialmente por Allan Kardec, desenvolveu-se em algumas regiões do mundo, e mais concretamente no Brasil. Entretanto, seguiu existindo na França ao longo do século XX, embora de forma mais irregular. Sua implantação a partir dos anos 80 deve muito à nossa associação, Cercle Spirite Allan Kardec, criada em 1977.
Nesse desenvolvimento histórico de mais de 150 anos (celebramos os 150 anos da morte de Allan Kardec nos dias 30 e 31 de março de 2019 em um grande foro em Nancy), o espiritismo foi objeto de experimentos científicos, de reflexões filosóficas, e, inclusive, de considerações éticas e morais versando sobre a aplicação da ideia. Mais concretamente, no Brasil, os grupos espíritas acudiram ao resgate de estruturas sociais insuficientes ou inexistentes, criando centros de atenção extraescolar, assistência médica e psiquiátrica, orfanatos, e também ajudando os necessitados com restaurantes sociais e outras distribuições de alimentos.
Assim, de forma organizada, o apoio caritativo foi e segue sendo a marca social do espiritismo brasileiro. Desse modo, os espíritas brasileiros puseram em prática o que Allan Kardec já havia preconizado, embora em uma escala mais limitada na França do século XIX e que havia registrado em suas notas publicadas no livro Obras Póstumas.
Os espíritas latino-americanos buscaram assim a aplicação moral dos ensinamentos de Kardec, essencialmente no campo das ações caritativas, e alguns deles, como o argentino Manuel Porteiro, em um campo mais amplo de reflexão sobre a condição humana e sobre as falhas dos sistemas políticos e econômicos que produzem as piores desigualdades, Assim, a partir da obra mestra de Allan Kardec, e em particular O Livro dos Espíritos, vários intelectuais espíritas, especialmente latino-americanos, tentaram transpor ou adaptar a moral espírita a uma ética mais universal que já não apenas questiona a consciência individual, mas também a reflexão coletiva sobre a possibilidade de conceber outros modelos de sociedade. Em particular José Marti (1853/1895), que lutou pela independência de Cuba, e o presidente reformista Francisco Modero, no México (presidência de 1911 a 1913), tentaram combinar suas responsabilidades políticas com sua filiação espiritista.
Também convém mencionar a experiência única na França do industrial Jean-Baptiste Godin, que, discípulo de Charles Fourrier e fervoroso seguidor do espiritismo, criou na região de Aisne sua “Familistere de Guise”, uma espécie de cooperativa na qual tudo estava organizado em termos domésticos, seguro médico, aposentadoria, etc. O princípio era o de redistribuir a riqueza industrial entre os trabalhadores. O princípio de redistribuição da riqueza industrial aos trabalhadores. Esse experimento, iniciado por Godin, em 1859, terminou em 1968.
Relativamente às ações sociais na França, assinalamos este texto da Federação Espírita de Lyon:
“ As atividades da Federação não se limitavam à prática do espiritismo. Henri Sausse, considerando que ‘o espiritismo é uma obra de caridade moral e material e que é bom que se confirme com fatos’, propôs a criação de uma Caixa de Assistência em 1888. Esse fundo, que se nutria da arrecadação em conferências e doações privadas, estava destinado a ajudar os anciãos e os necessitados, pagando a eles uma pensão. Em 1904, por proposta de dois médiuns da sociedade fraternal, abriu-se uma creche espírita para os filhos dos trabalhadores.
Henri Sausse escreveu um folheto intitulado ‘Esperança e Valor’; federação publicou 10.000 folhetos que foram distribuídos gratuitamente às famílias que tinham perdido um filho, esse folheto explicava os princípios filosóficos e as bases científicas do espiritismo”.
Em nossos meios ocidentais, e mais concretamente na França, as questões políticas e sociais têm sido pouco discutidas, não sendo objeto de grandes debates ou consultas, em uma época na qual os princípios fundamentais ainda deveriam consolidar-se, particularmente com os experimentos científicos realizados até os anos vinte.
Apesar disso, essas questões têm sido amplamente abordadas em nosso Círculo, desde sua criação (primeiras experiências em 1974 e declaração como associação em 1977), como prolongamento filosófico de uma moral, ou melhor, de uma ética já evocada na obra de Allan Kardec, mas que merecia um melhor desenvolvimento, assim como uma atualização devido à evolução das sociedades desde a época do Segundo Império. Assim, temos levado a cabo numerosas reflexões e temos formulado muitas perguntas aos espíritos que responderam, indicando-nos nem sempre soluções pré-fabricadas, mas direções e caminhos a explorar, que se ajustam aos princípios fundamentais do espiritismo.
O objetivo da presente obra é, pois, dar conta de mais de quarenta e cinco anos de reflexões humanas e de mensagens espíritas, numa tentativa de síntese que nunca será perfeita nem completa, mas que pretende ser suficientemente representativa de um espiritismo social que propõe as perguntas corretas a uma humanidade que deve crescer, trazendo elementos de resposta, às vezes precisos no que se refere a questões sociais, às vezes mais abstratos no que se refere às complexidades econômicas e políticas para todo o planeta.
Nessa tese ou ensaio, que se converteu em livro, temos tratado de não raciocinar demasiado a partir de dados franco/franceses ou inclusive europeus, mas ampliar nossa reflexão ao conjunto dos problemas do planeta, o que, de fato, está amplamente demonstrado pelas mensagens do além, que sobre esses temas indicam as preocupações dos Espíritos sobre problemas mais planetários que estritamente limitados a nosso país.
Temos buscado não defender tal ou qual programa político ou econômico, mas definir um projeto de sociedade com implicações humanas, políticas e econômicas, incluindo a dimensão espiritual e divina, a dimensão reencarnacionista, a dimensão evolutiva que inclui também realidades extraterrestres de mundos superiores, modelos do que a Terra pode chegar a ser.
Portanto, propomos linhas de pensamento essenciais nas quais integramos os grandes princípios espíritas. Algumas de nossas teses coincidem as propostas existentes, seja nos comitês de ética, entre os ecologistas e entre certos políticos e economistas; mas na verdade, o que nos faz diferentes é que nossas reflexões espiritualistas integram a transcendência divina, a reencarnação evolutiva e a pluralidade de mundos em um universo infinito. É possível que algumas de nossas teses estejam em perfeita correlação com projetos e estudos de grupos humanos, políticos, sindicais, sociais e associativos. Em todos os casos, o princípio humanista de compartilhar e amar segue sendo o motor das propostas. De nossa parte, não seguimos essa ou aquela organização, mas nos unimos a algumas delas, significando simplesmente que os princípios universais de igualdade, justiça e liberdade estão inscritos no mais profundo do coração desde o maior ateu até o mais religioso. Existe, pois, uma moral universal que sustenta todas as almas mais nobres. E é através da união de todas essas boas vontades que o amor triunfará, e esse dia o Espiritismo se fará muito presente e será reconhecido por sua relação natural com o outro mundo. Ainda não estamos ali, e antes de chegar a esse novo mundo, teremos que passar por etapas evolutivas na organização de nossas sociedades. É, portanto, sobre essas etapas que trataremos nos capítulos seguintes, esperando ter tocado alguns pontos essenciais que possam servir de reflexão para todos e cada um de nós, para uma melhor participação coletiva no futuro e para a salvaguarda de nossa casa comum. *
* Fórmula utilizada pelo Papa Francisco em sua encíclica Laudato si’, de 2015.
[Transcrição do prólogo do livro O Mundo de Amanhã à Luz do Espiritismo]