Milton Medran Moreira
“ Sua força (do espiritismo) está na filosofia, no apelo que faz à razão, ao bom senso.”
Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, Conclusão, Item 6.
H á uma distinção fundamental entre o espiritualismo místico o e o racional. Aquele está vinculado ao pensamento mágico, enquanto este tem na razão seus sólidos alicerces.
Fruto amadurecido do Iluminismo que o antecedeu, o espiritismo iluminou com o facho da razão questões que o misticismo religioso houvera aprisionado no quarto escuro do mistério.
O pensamento e o agir mágicos nutrem-se e sobrevivem do mistério. Você pode, se lhe aprouver, interpretar questões como a existência de Deus, do espírito, sua sobrevivência após a morte e sua comunicabilidade com o mundo material, a partir dos apelos do mistério. As religiões optaram por compartimentar cada uma dessas questões em dogmas que independem ou se fazem insuscetíveis à interpretação racional.
Já o espiritismo, histórica extensão e condensação doutrinária do moderno espiritualismo racional, encontrou na própria razão e nas ciências humanas, elementos de demonstração experimental e consequente convicção filosófica.
Todos quantos nos declaramos espíritas somos testados, em cada episódio de nossa vida individual ou social, a aferir se os valores por nós tidos como espíritas, estão vinculados, efetivamente, ao âmbito da razão ou se ainda tendemos, por atávicas influências religiosas, a interpretá-los a partir do pensamento mágico.
Vivemos neste momento um grave episódio de abrangência mundial, no campo da saúde pública, que pode, como tantos outros fenômenos da vida, ser interpretado e combatido tanto a partir do pensamento mágico, como do racional.
Estaremos vinculando-o ao pensamento mágico, por exemplo, se atribuirmos sua origem à iniciativa e à ação de um ser angelical, agente da justiça corretiva de um deus repressor, que se mostra cansado das maldades humanas, mas, ao mesmo tempo, misericordioso, por poupar a humanidade de drástica e dolorosa destruição. Igualmente, estaremos dando vazão ao atavismo mágico se buscarmos a solução dos males físicos causados por um vírus, que é produto da natureza, recorrendo a processos curativos sobre-humanos e alienados da ciência e do mundo natural.
Não há, na interpretação racional e livre-pensadora espírita, qualquer desprezo às causas espirituais dos males humanos e nem à possibilidade da intervenção dos espíritos no campo terapêutico. Entretanto, não se pode perder de vista que:
a) O homem é um complexo biológico/espiritual/social em cuja intimidade se devem harmonizar todos esses componentes, os quais precisam sempre ser observados e administrados conjuntamente;
b) A mais eficiente expressão da comunicabilidade entre as dimensões material e espiritual não se dá por processos eivados de misticismo e mistérios, mas tende a se perfectibilizar mediante a fina sintonia entre encarnados e desencarnados, detentores, em seus respectivos planos, de conhecimentos capazes de aliviar ou pôr fim aos sofrimentos humanos. Logo, se, no mundo espiritual, um ente desencarnado é, efetivamente, detentor de conhecimentos capazes de trazer a cura de alguma patologia aqui ainda incurável, seu esforço preferencial há de se dirigir justamente a mentes encarnadas envolvidas por esse mesmo objetivo. É a partir desse processo, mente a mente, entre a humanidade encarnada e desencarnada, que se operam as grandes descobertas e os avanços da ciência e do pensamento humanos.
Nessa linha de pensamento, é sempre dever dos espíritas buscar na própria natureza humana - na qual convivem o erro, o acerto, as experiências exitosas ou equivocadas – o caminho do aprimoramento físico, intelectual e moral da humanidade. A ciência, aí, assume importância capital para a correta e racional resolução dos grandes problemas humanos.
Entendam-se como ciência todas as áreas do conhecimento humano, da biologia ao direito, da química à pedagogia, da medicina à psicologia, instâncias, todas elas, sujeitas a uma ética de validade universal. O intercâmbio espiritual, área específica desenvolvida pelo espiritismo, deve ter como objetivo justamente a busca de uma síntese de todos esses conhecimentos, numa perspectiva centrada na realidade da existência do espírito e na comunicabilidade entre a humanidade encarnada e desencarnada, em ações onde estejam presentes o amor e a racionalidade, distanciados de misticismos e superstições.
A ciência, vista sob uma perspectiva imortalista e progressista, deve ser o centro para o qual convirjam os esforços dos espíritas, desestimulando-se, assim, as crendices, as visões mitológicas acerca de Deus e do Universo, as curas milagrosas, substituindo o pensamento e a ação mágicos pelo incentivo ao conhecimento racional, construído pelo natural e sadio intercâmbio entre as dimensões material e espiritual.
[Editorial de CCEPA Opinião, do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, Brasil - Abril 2020]