ARGUMENTAÇÃO, SIGNIFICAÇÃO E REFERÊNCIA

 

Os gregos se ocupavam de concepções que consideravam a passagem do sensível para o inteligível. As teorias vão-se desenvolvendo, ao longo do tempo, através de uma ou outra polaridade. No pólo sensível situa-se a possibilidade de representação do real, através do conceito, absorvido pelos signos. Tratar com a argumentação é romper com o modelo tradicional de signo, ligado ao nome e este ligado à função veritativa da linguagem. A representação de uma realidade, na argumentação é assumida como construção da linguagem , através dos efeitos de verdade. Há um parecer ser verdadeiro – apagam-se o uso dos pronomes eu e tu. Retiram-se expressões marcadamente coloquiais como aqui, ai, ontem, etc. Encontramos aí uma compreensão para os efeitos do texto construído como diálogo , no Livro dos Espíritos. A relação eu ( Kardec) e tu ( os espíritos) como interlocutores é um exemplo de conhecimento sendo constituído como interlocução- característica do conhecimento que não é dado enquanto revelação. O efeito é de proximidade, inclusão, construção humana, conhecimento com acessibilidade.

A questão da referência esteve sempre presente desde a diferença entre o inteligível e o sensível. Em Crátilo, ao perguntar a Hermógenes se o nome que damos aos objetos são próprios de cada um , Platão remetia ao falar falso e verdadeiro. Em certos diálogos , como Fedon e República, Platão falava do mundo das idéias e do mundo real. Logo, quando falamos sobre o mundo, não falamos sobre seres de carne e osso mas através de recortes mentais e de apreensão pelos sentimentos e valores. Falamos de uma presença vinda pela linguagem que já não é mais presença posto que a todo momento pelo viver, sentir e pensar novos sentidos estão sempre sendo produzidos. A questão é pensar o que é o sensível. Uma estrela que vemos não é senão reflexo de uma estrela real .Enquanto entidade autônoma, estava localizada há milhões de quilômetros de distância, de tal forma que o tempo que sua luz levou para viajar no espaço até que fosse percebida, foi suficiente para sua desintegração. Seu efeito é real, sua existência é uma aparência.. De que sensível, então, o inteligível trata? Se a realidade para o ser humano é construída de modelos mentais, então a questão do falso e do verdadeiro pode ser problematizada. Tratar da linguagem, assumindo-a como processo de constituição de significados, que não se confundem com verdades, exige que consideremos uma concepção de linguagem que não esteja ligada apenas à concepção do nome, ao objetivo de designar coisas, mas ao de influenciar. Vejamos uma destas teorias que sustentam que a função da linguagem é influenciar. Trata-se da argumentação.

Oswald Ducrot é um lingüista francês que propõe a função da linguagem como argumentação. Para ele, a linguagem é sempre argumentação. Os atos de fala não têm a ver com verdade ou falsidade. . É o caso de um desejo ou de uma ordem, que alude a um mundo que não existe fora desta ordem ou desejo. Ducrot explica que a diferença entre realidade e sentido data do século XIII , quando se opunha entre as propriedades lógicas da linguagem, o "significatio" à "suppositio". O primeiro era definido como uma relação entre uma idéia, uma realidade fônica e uma coisa. Quando é afirmado "Sócrates é branco", a palavra se refere a um indivíduo. Ao afirmarmos "o homem é mortal", homem supõe uma relação a um conjunto de seres , entre os quais se encontra Sócrates. . A palavra homem não tem relação com Sócrates em sua natureza individual , mas em sua condição humana geral .As idéias não são os significados. Estes são resultados de construções particulares expressas e construídas por línguas particulares. Ë conhecido o episódio narrado por Humberto Eco , sobre seu livro Leitor in fábula. Querendo traduzi-lo para o inglês, encaminhou-o para um tradutor, falante de língua inglesa. Ao receber o livro traduzido, não reconheceu o livro que ele tinha escrito. Era outro texto. Ao passar para outra língua, o falante nativo não traduziu palavras, mas pelas palavras traduziu uma forma de organizar o mundo, característica, no caso, deste tradutor de Eco, do modo norte-americano de organizar o sentido do mundo, diferente do modo italiano. Não é devido, por exemplo, ao conceito universal de árvore que a palavra árvore, em português, aponta para um domínio diferente de si mesma. É devido a uma visão ocidental, brasileira, regional, etc. que se pode pensar em árvores particulares.

O sentido das palavras deve ser buscado no modus. Esta dimensão aparece marcada pelo tipo de verbos, pela pontuação e outros recursos da língua, que produzem efeitos de mobilização afetiva ou cognitiva sobre o leitor. Há um diálogo em Platão, chamado Laches, que trata sobre a coragem. A palavra coragem evoca um princípio de avaliação das ações humanas, onde ser corajoso é ser bom. Este princípio orienta o sentido dos enunciados. É como um regra que está no interior dos enunciados , orientando-os. Assim , os enunciados convocam princípios avaliativos. Quando alguém afirma que ser elegante não é vão, há por parte de quem fala o assumir um valor comum - a elegância é uma qualidade. Este valor é assumido, a partir uma atitude cultural, segundo a qual , por exemplo, a aparência determina um estado de ser.. Outro exemplo- dependendo do momento político-econômico, se for recessão, orientado pelos princípios- gastar não é bom ou gastar é bom, dizer que alguém é sovina ou econômico tem diferença. Quem não gasta na recessão é econômico e, em períodos de abertura, é sovina. Assim como quem gasta será perdulário ou generoso, num caso ou noutro. É o caso das vitrines. A expressão "menos de..." orienta para o sentido de mais barato de acessível ,etc.

Entre os livros de Allan Kardec, particularmente, O Livro dos Espíritos nos apresenta exemplos de linguagem como argumentação .Na parte primeira, o sentido do texto é argumentativo, tanto de Kardec em relação aos espíritos, quanto destes, em relação a Kardec e, ambos, em relação ao leitor. O diálogo de Kardec com os espíritos se insere nas idéias que brevemente desenvolvemos.

Vejamos a pergunta 2: "O que devemos entender por infinito? Observemos que a pergunta não foi- O que é infinito? A expressão- o que devemos entender por autoriza subentendidos por parte do leitor, a partir do uso dos verbos devemos e entender:

  • propõe o infinito como objeto do pensamento, uma idéia orientadora mais que um conceito;

  • a palavra entendimento remete para atitude ativa, construção mental cuja responsabilidade é de quem entende, envolvendo elaboração, participação, no caso, de todos autorizados pelo uso da terceira pessoa do plural - nós

  • verbo dever em devemos entender, faz parte da categoria de verbos modais, tipo particular de verbos, relacionados com a lógica modal , que é uma lógica do sujeito, assim como querer e poder,. Particularmente, neste caso, o verbo dever remete para o entendimento. Surge como uma instituição regulada pelo dever, criando uma obrigatoriedade do sujeito em relação ao entendimento. Novamente surge a dimensão do modus, antes referido.

A seguir , Kardec não pergunta – Deus é infinito?, mas- Poderíamos ( grifo nosso) dizer que Deus é infinito? A resposta dos espíritos é exemplar, na linha do que estamos desenvolvendo- eles desafiam, convocam ao pensamento, provocam. O caminho para leitura neste caso é só um - o leitor ativo, envolvido numa hermenêutica de instauração do sentido, a partir de "uma resposta sem resposta" dos espíritos , caracterizando a possibilidade apresentada por Kardec, como definição incompleta, pobreza de linguagem, insuficiência para definir.

A leitura exige um pensamento do tipo se x, então Y. Se a definição proposta por Kardec é incompleta, então....cabe a cada um ou a grupos (os leitores, os estudiosos) continuarem o pensamento, entrando no compromisso de construção da possível resposta que, como sabemos, evoluirá e mudará na medida de nossa evolução. Nem mesmo os espíritos se autorizam a dar A resposta. Há, sim, caminhos, produzidos pelos desafios de um pensamento expresso numa pergunta que é avaliada como incompleta e insuficiente.

Com Kardec, estamos todos chamados a contribuir para uma nova concepção de espiritualidade - o Espiritismo. Nossa tarefa é de continuarmos sua construção através de nosso pensamento que deve ser sensível, atual e, logo, afetivo e problematizador. Querer, dever, poder para cada vez mais sermos e sabermos na trajetória de evolução de todos os seres da natureza, este é um grande e precioso desafio. Para além dos textos estas dimensões se atualizam em nossa relação com todos os planos da natureza que, em diferentes expressões nos convidam a leituras emancipadoras.

Assumir a argumentação como aspecto constituidor da linguagem implica assumirmos nossa relação com o texto, enquanto ato de leitura, como a ocupação dos espaços entre o pensamento manifesto no texto pelo autor e o pensamento em produção, pelo ato de leitura, do leitor. Uma atitude passiva, de entendimento do texto como um lugar de autoridade que institui uma determinada forma de saber, onde se espera que as pessoas prolonguem e reforcem a expectativa de referência do texto , problematizada neste trabalho, ou o lugar de levantamento de expectativas, constituidoras do suspense no espaço que vai do se ... ao então, que possibilita o aparecimento do sentido novo.



Bibliografia

DICIONÁRIO DE LA REAL ACADEMIA DE LA LENGUA ESPANHOLA. Real Academia espanhola. Madrid, 1956. 19. Ed. Espasa- Calpe. S.A

DUCROT, Oswald. Provar e dizer: leis lógicas e argumentativas. São Paulo, Global, 1981

.Dizer e o dito. Campinas, Pontes, 1987


KARDEC, Allan. O livro dos espíritos: tradução de Renata de oliveira Barboza da Siva e Simone T. Nakamura Bele e Silva. São Paulo: Petit,1999.

PLATÃO. Crátilo. Lisboa. Sá d Costa,1963


(*) Educadora, Doutora em Ciências da Linguagem pela Universidade de São Paulo, Professora dos Cursos de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Espiritualidade da UFRGS, ex-diretora da Federação Espírita do Rio Grande do Sul, autora de livros e artigos.

 

Porto Alegre-RS, Brasil