Dinorá Fraga da Silva (*)

Um texto produz informação e, mais que isso, sustenta valores que circulam em dada comunidade sociocultural, constituindo-se, pois, mais que lugar de representação de idéias, um lugar de comunicação. Pela construção da linguagem, conscientemente ou não, um autor persuade, convence, constrói crenças, estimula, desafia, intimida, seduz..... Assim, o texto é um lugar de influenciar e ser influenciado. O texto não é , então , neutro. É muito mais que conjunto de idéias, consideradas como "verdades." É um espaço de construção de idéias e de influência Isso é muito mais que espaço de circulação de informações. Escrever e ler, assim como falar e ouvir, são atos de comunicação, por isso são atos políticos e existenciais.

Para compreender esta proposta , feita pelos modernas teorias da linguagem, temos de refletir que um texto não é constituído só de palavras que referem tempo , espaço , seres e seus atributos. Este aspecto é construído pelas possibilidades que uma dada língua dispõe. Uma língua é sempre uma forma de ver o mundo e de influenciar outras pessoas. E isso se faz por jogos de construção de linguagem. Do ponto de vista das palavras, os textos reiteram, por um lado, significados já instituídos, dicionarizados, acumulados no tempo por uma comunidade lingüistica. Por outro lado, possuem mecanismos de criação para atualizar novos recortes de significados . Há uma tensão entre duas forças- uma, que tende a conservar, outra que tende a mudar. Nesta tensão, as mudanças vão ocorrendo, nos sistemas, sejam quais forem.

Em nosso caso, e com relação aos textos de Kardec, trata-se do sistema lingüístico. Só conservar ou só mudar produz linguagem ineficiente. O predomínio da força de conservação produz sentidos consensuais, desgastados, cheios de mesmice, de obsolescência. Palavras desgastadas por veicular idéias desgastadas. O predomínio da força de mudança gera novidade radical, cujos significados não são compreendidos pelos leitores, falantes de um dada língua. Esta é uma abordagem dialética do funcionamento da linguagem, própria de estudos mais atuais. A linguagem funciona na medida em que muda porque conserva e conserva porque muda.

Quando Allan Kardec insere na Introdução do Estudo da Doutrina Espírita, o item – Palavras Novas, coloca-se numa perspectiva segundo a qual uma palavra reflete uma idéia , que , por sua vez, reflete um certo modo de construir o conhecimento, próprio de uma época. . Uma nova idéia gera uma nova palavra. Numa visão da modernidade, há o entendimento de correspondência, onde para cada idéia há uma palavra, e ler é decodificar, isto é, saber a correspondência entre idéias e palavras, propostas pelo autor e constituídas na cultura. Na época em que os textos da teoria espírita foram escritos, esta era a concepção de linguagem vigente.

A consciência da linguagem como comunicação e, logo, influência e espaço aberto para interpretações e de parceria na construção de sentido não era dada.. ‘Para designar coisas novas são necessárias palavras novas" ( Kardec,1999:p.9) Esta é a concepção corrente de então e que foi assumida por Kardec. Poder-se-ia inferir que o autor apresentaria um termo novo para uma idéia nova proposta por ele .onde haveria uma idéia inequívoca, dada por uma definição inequívoca. E ele o faz. Contudo, em sua competência de pensador, à frente de seu tempo, surpreende-nos. Já na busca da definição, ele gera um espaço aberto para a inserção das pessoas no compromisso de construir pensamento em relação a este novo conhecimento, na esteira de que estaria sendo dita a primeira palavra mas não a última. Diz-nos ele:

"Diremos que a Doutrina Espírita ou o Espiritismo tem por princípio a relação (grifo nosso) do mundo material com os espíritos ou seres do mundo espiritual") idem, p. 10

A nova palavra não vem por uma linha etimológica, onde a partir de "spiritus" - definido, a partir do latim, como "ser imaterial e dotado de razão" ( Real Academia, 1956).Ao invés de uma definição, temos a apresentação de um campo de ocupação deste novo conhecimento, cujo objeto de estudo ( compreensão contemporânea de definição de ciência em seus diferentes tipos, se assim podemos falar- no caso, é ocupar-se da relação. Uma relação é sempre um campo aberto, inesgotável de semelhanças, diferenças, de problematizações e construções. Entendemos que, entre tantos momentos , este é um onde é colocado o caráter aberto, filosófico e investigativo do Espiritismo.

O esforço de como leitor do ano 2000, contribuirmos com Kardec, em seu propósito de atualização da teoria espírita, passa pela reflexão da construção do texto da obra kardequiana . É com este intento que apontamos uma contradição entre uma teoria nova que é apresentada por seu campo e objeto de estudos e o amarramento a uma abordagem de palavra como representação de idéias , visão esta que ele mesmo supera sem poder, no entanto, dar-se conta, devido ao panorama que regulava a ciência na época., panorama este que orienta a Introdução do Livro dos espíritos, enquanto teoria de linguagem explicitada :

"Para designar coisas novas são necessárias palavras novas.: assim exige a clareza de uma língua, para evitar confusão que ocorre quando uma palavra tem múltiplo sentido" ( idem, p. 10).

Esta posição sobre as palavras é bem do pensamento moderno. Uma palavra representa uma coisa, através de um conceito. Para cada conceito corresponde uma expressão lingüística, a palavra . Fala-se ou escreve-se a verdade toda vez que a palavra usada possuir uma relação de adequação entre o que se diz e um estado de coisas qualquer. Esta adequação é arbitrária e convencionalmente constituída. Não há um vínculo natural entre a palavra e o que ela designa. Uma vez denominada a idéia ou a coisa, a palavra passa a ter o poder de dizer "a verdade." Neste entendimento, conveniente para o pensamento moderno, da ciência e do desenvolvimento industrial, a palavra passa a funcionar como uma mercadoria. Os signos lingüísticos são mercadorias que circulam com valores únicos, que devem ser inequívocos para garantir, com eficiência, a circulação de bens de consumo.

Há um sentido político- econômico ao afirmar que mais de um significado para cada signo gera confusão. É a busca do regular , a busca da verdade, da certeza. Ora , como apresentar um campo novo de conhecimento pelo seu objeto e campo de interesse, defendendo, ao mesmo tempo que a inexistência de uma palavra para a mesma coisa gera confusão? . O campo da relação , como vimos, pressupõe abertura que envolve as pessoas no compromisso ou desafio de também construir estas relações .Isso envolve pessoas e grupos ativos , atuantes, construindo pela força da mudança, nuanças, acepções, variações de entendimento, a partir de significados construídos antes por uma dada comunidade sociocultural.

Kardec continua na direção aqui contestada

" Uma outra palavra sobre a qual devemos igualmente nos entender(...) e que se torna objeto de muitas controvérsias por falta de um significado que a defina com precisão determinada ‘( o grifo é nosso ) é a palavra alma (...) Uma língua perfeita em que cada idéia tivesse sua representação por um termo próprio, evitaria muitas discussões ; com uma palavra para cada coisa todos de entenderiam ) idem, p.10.

Mais adiante , após discorrer sobre os diferentes sentidos da palavra alma, afirma:

"sem considerar o mérito destas opiniões , considerando apenas o lado lingüistico da questão, diremos que as três aplicações da palavra alma , constituem três idéias distintas e que , para serem claramente expressas, cada uma precisaria ter um termo diferente" ( ide, p. 10).

Depois de outras considerações, propõe o termo princípio vital. Esta concepção gera um leitor que busca no texto aquilo que já está, de antemão, dado, cabendo a ele, leitor, "beber na fonte", com cuidado para não errar ou desvirtuar o sentido do autor .Qualquer que seja este autor, ele tem poder de trazer o "melhor e mais verdadeiro" significado depositado no texto, que deve ser apreendido pelo leitor. Por certo, esta concepção de linguagem que aparece explicitada por Kardec não é compatível com o caráter aberto da teoria proposta, mas era a que vigorava. As teorias contemporâneas lhe permitiriam assumir uma construção marcadamente argumentativa, como característica do caráter de abertura do novo conhecimento, convocando-se o leitor a participar mentalmente, permitindo ou potencializando tomadas de consciência. Pensamos ser útil a apresentação de algumas idéias que orientam os estudos em linguagem mais atuais.